São Paulo, sexta-feira, 03 de março de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CINEMA - ESTRÉIAS
"Regras da Vida" é drama de chorar

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

A primeira pergunta que suscita "As Regras da Vida" é: por que histórias sentimentais devem ser contadas sentimentalmente? Não basta que sejam sentimentais?
Pode-se fazer essa pergunta ainda quando desfilam os créditos de abertura. As imagens de Lasse Hallstrom já mostram o quanto serão melosas, e temos de escutar uma música ainda mais melosa.
Esse é o tom que dominará o filme quase inteiro. Já seria problemático se fosse só isso. Mas Hallstrom não é um qualquer. É um artista. Um homem consciente de que sua missão é fazer algo diferente do standard.
Temos então um filme de grandes temas: a orfandade, a descoberta da vida, o desejo e suas surpresas. Também haverá temas menores, que na verdade seriam os mais interessantes -como o aborto, as drogas (e seu uso por médicos)-, caso Hallstrom não desse tanto crédito ao caráter homérico do percurso de Homer Wells (Tobey Maguire).
Homer cria-se em um orfanato do Maine, tendo por pai adotivo o médico da instituição, Wilbur Larch (Michael Caine) e, na mente, histórias de Charles Dickens sobre crescer, tornar-se homem, tomar o destino em suas mãos.
Homer é também assistente de Larch e convive com a realidade deprimente do orfanato: mães que abandonam os filhos após dar à luz, crianças adotadas por estranhas criaturas, outras que sucumbem às próprias fraquezas etc.
Já homem, Homer pega a estrada e vai se tornar colhedor de maçãs. O orfanato podia ser limitado, mas a vida ali tinha regras muito claras, e a aventura de Homer consistirá em descobrir o caos do mundo (inclusive sendo atingido por ele).
O roteiro proposto por John Irving está longe de ser desinteressante. Há quem diga, ao sair do filme, que a história é previsível. Mas a previsibilidade não é um bom critério para aferir o valor de uma história. Podemos assistir a um bom filme sabendo previamente seu final (como "Crepúsculo dos Deuses", para ficar num caso exemplar), mas isso não nos afeta.
No caso, porém, a previsibilidade está menos na história do que na "mise en scène". Assim, quando Homer encontra a jovem Candy (Charlize Theron), Lasse Hallstrom nos oferece tantas pistas do que virá a seguir que podemos deduzir a evolução da história com uma hora de antecedência, tornando o enredo supérfluo.
Ao contrário, quando seria conveniente fornecer algumas indicações sobre fatos que estão a caminho (como um caso escabroso de incesto que acontece a horas tantas), o filme se cala e temos a impressão, quando a história é revelada, de estarmos diante de algo plenamente arbitrário.
Com isso, não é de estranhar que os 127 minutos de projeção acabem parecendo um pesadelo, em que boas idéias de roteiro acabam sendo massacradas por uma direção terrivelmente enfadonha, e sobrem apenas alguns momentos de observação da vida no orfanato, ou ainda a cena sensual em que Homer e Candy se reconhecem apaixonados -cena que faz justiça à origem sueca do diretor, embora não dure mais que cinco ou dez segundos.
A questão que "Regras da Vida" deixa no ar, angustiante, é: como pode um filme desses ser indicado para sete Oscar (incluindo melhor filme e direção)? Certo, a história nos ensina a não confiar em premiações em geral e no Oscar em particular.
Ainda assim, os indicados deste ano espantarão os cinéfilos criados nos anos 60/70, quando o cinema podia ser visto e sentido como a arte moderna por excelência. Nesse melaço regressivo de Lasse Hallstrom tudo parece querer nos fazer chorar. O único motivo para chorar, no entanto, parece ser o destino do cinema, mais maltratado aqui do que criança de orfanato.
No mais, será justo creditar a Hallstrom a boa direção das crianças em cena. E alguns atores, Tobey Maguire e Michael Caine em particular, estão muito bem. É bem pouco.


Avaliação:  

Filme: Regras da Vida (The Cider House Rules) Direção: Lasse Hallstrom Produção: EUA, 99 Com: Michael Caine, Tobey Maguire, Charlize Theron Quando: a partir de hoje, nos cines Lumière 1, SP Market 4 e circuito

Texto Anterior: O cineasta, o bandido e o mecenato social
Próximo Texto: Atriz é ativista antiestupro
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.