São Paulo, sexta-feira, 03 de março de 2000


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O cineasta, o bandido e o mecenato social

ARMANDO ANTENORE
da Reportagem Local

É difícil, por enquanto, afirmar que o documentarista João Moreira Salles não agiu de boa-fé quando resolveu patrocinar Marcinho VP, um dos líderes do narcotráfico nos morros do Rio. Deu-lhe, conforme relatou à imprensa, uma ajuda de R$ 1.200 durante quatro meses do ano passado. Em troca, impôs duas condições: que escrevesse uma autobiografia e deixasse o crime.
Há quem veja no acordo mais do que altruísmo e prefira tomá-lo por um ato de coragem, de empenho cívico, de rebeldia contra papéis sociais preestabelecidos, de compreensão generosa da tragédia urbana carioca e até de vanguarda artística. Foi assim que psicanalistas, escritores, antropólogos e políticos definiram o gesto de Moreira Salles no decorrer da semana.
Cacá Diegues -diretor de "Orfeu", filme em que o personagem Lucinho exibe traços de Marcinho VP- distinguiu no documentarista sinais de um "herói moderno", sôfrego por apaziguar "a cidade partida".
O próprio Moreira Salles, herdeiro do Unibanco, parece se sentir como uma espécie de embaixador da tolerância, um diplomata que busca modificar os contatos corrosivos entre a elite e a miséria.
Em artigo no jornal "O Globo", escreveu: "De tudo que está sendo dito a respeito desse caso, o mais importante é o fato de que duas pessoas que jamais se encontrariam, segundo todas as normas do que é próprio e impróprio neste país tão desigual, acabaram se encontrando, conversaram e tentaram com franqueza entender seus respectivos pontos de vista".
Para o cineasta, a arte aproxima e humaniza os dois pólos. A arte pode regenerar Marcinho. "Ele é um cara que tenta se civilizar. Leu Albert Camus, leu "O Homem Revoltado" e quis entender cada parágrafo", explicou à Folha em entrevista publicada na terça-feira.
O arquiteto e prefeito do Rio, Luiz Paulo Conde, disse o mesmo com outras palavras: "O julgamento (do episódio) ficará por conta da qualidade da obra de arte que (o traficante) produzir. Houve transgressão, mas, se a obra trouxer benefícios para a sociedade, esta transgressão poderá ser permitida".
Ocorre que, antes de firmarem um compromisso artístico e ético, Marcinho e Moreira Salles estabeleceram uma relação comercial. Este, sim, é o fato mais importante de todo o caso -porque revela muito sobre seus protagonistas (o cineasta com pedigree de banqueiro, o negociante de drogas com pretensões intelectuais) e sobre o mundo que habitam.
Moreira Salles conheceu Marcinho no morro Dona Marta, zona sul do Rio, enquanto rodava o documentário "Notícias de uma Guerra Particular". Conta que se impressionou com a inteligência e o discurso por vezes visionário do traficante. Decidiu, daí, afastá-lo da marginalidade.
Foram dezenas de conversas. Quando percebeu que não dispunha de mais argumentos para dissuadir Marcinho do crime, lançou a proposta: "Escreva o livro. Eu pago".
Existia algo entre os dois que lembrasse amizade? Moreira Salles dá a entender que sim. Fala, ainda, em cumplicidade, respeito, fidelidade. Só que, às tantas, o dinheiro entrou na história -e, aqui, o relacionamento do cineasta aristocrático com o jovem excluído perdeu tudo o que pudesse ter de inovador ou cívico. As coisas voltaram para o ponto de sempre. O dono do capital fez uma oferta, e o morador do morro aceitou.
Se na Renascença os Medici financiavam os melhores artistas da época, Moreira Salles escolheu bancar aquele que já se declarou "o melhor bandido do Brasil". Encomendou-lhe não uma pintura, mas um livro-testemunho e o arrependimento. Praticou o que se pode chamar de mecenato social -o humanista propondo-se a moldar índoles pela forja do dinheiro.
E de que maneira decidiu quanto pagaria? "Informei-me de que a bolsa corrente para um escritor iniciante oscila entre R$ 1.200 e R$ 1.500", respondeu na entrevista de terça-feira à Folha. O mercado o pautou.
Onde, então, a rebeldia? Onde a transgressão de um encontro que, nas palavras de Moreira Salles, contraria "todas as normas do que é próprio e impróprio neste país tão desigual"?
O documentarista talvez tenha desrespeitado o Código Penal, mas em que momento subverteu de fato a ordem dominante? Que contribuição deu para, como pretendia, renovar, arejar, questionar as relações entre ricos e pobres no país -relações que se tornam cada vez mais dramáticas justamente por se guiarem pelas regras de mercado?
Repito: do ponto de vista individual, não há o que julgar na atitude do cineasta. É impossível medir quanto de esperança, idealismo, dor e culpa motivam o coração alheio. Mas também é impossível deixar de ver que a lógica cruel responsável pela separação social de Marcinho VP e João Moreira Salles permanece rigorosamente intocada.


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