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O cineasta, o bandido e o mecenato social
ARMANDO ANTENORE
da Reportagem Local
É difícil, por enquanto, afirmar
que o documentarista João Moreira Salles não agiu de boa-fé
quando resolveu patrocinar Marcinho VP, um dos líderes do narcotráfico nos morros do Rio. Deu-lhe, conforme relatou à imprensa,
uma ajuda de R$ 1.200 durante
quatro meses do ano passado. Em
troca, impôs duas condições: que
escrevesse uma autobiografia e
deixasse o crime.
Há quem veja no acordo mais
do que altruísmo e prefira tomá-lo por um ato de coragem, de empenho cívico, de rebeldia contra
papéis sociais preestabelecidos,
de compreensão generosa da tragédia urbana carioca e até de vanguarda artística. Foi assim que
psicanalistas, escritores, antropólogos e políticos definiram o gesto
de Moreira Salles no decorrer da
semana.
Cacá Diegues -diretor de "Orfeu", filme em que o personagem
Lucinho exibe traços de Marcinho VP- distinguiu no documentarista sinais de um "herói
moderno", sôfrego por apaziguar
"a cidade partida".
O próprio Moreira Salles, herdeiro do Unibanco, parece se sentir como uma espécie de embaixador da tolerância, um diplomata
que busca modificar os contatos
corrosivos entre a elite e a miséria.
Em artigo no jornal "O Globo",
escreveu: "De tudo que está sendo
dito a respeito desse caso, o mais
importante é o fato de que duas
pessoas que jamais se encontrariam, segundo todas as normas
do que é próprio e impróprio neste país tão desigual, acabaram se
encontrando, conversaram e tentaram com franqueza entender
seus respectivos pontos de vista".
Para o cineasta, a arte aproxima
e humaniza os dois pólos. A arte
pode regenerar Marcinho. "Ele é
um cara que tenta se civilizar. Leu
Albert Camus, leu "O Homem Revoltado" e quis entender cada parágrafo", explicou à Folha em entrevista publicada na terça-feira.
O arquiteto e prefeito do Rio,
Luiz Paulo Conde, disse o mesmo
com outras palavras: "O julgamento (do episódio) ficará por
conta da qualidade da obra de arte que (o traficante) produzir.
Houve transgressão, mas, se a
obra trouxer benefícios para a sociedade, esta transgressão poderá
ser permitida".
Ocorre que, antes de firmarem
um compromisso artístico e ético,
Marcinho e Moreira Salles estabeleceram uma relação comercial.
Este, sim, é o fato mais importante de todo o caso -porque revela
muito sobre seus protagonistas (o
cineasta com pedigree de banqueiro, o negociante de drogas
com pretensões intelectuais) e sobre o mundo que habitam.
Moreira Salles conheceu Marcinho no morro Dona Marta, zona
sul do Rio, enquanto rodava o documentário "Notícias de uma
Guerra Particular". Conta que se
impressionou com a inteligência e
o discurso por vezes visionário do
traficante. Decidiu, daí, afastá-lo
da marginalidade.
Foram dezenas de conversas.
Quando percebeu que não dispunha de mais argumentos para dissuadir Marcinho do crime, lançou
a proposta: "Escreva o livro. Eu
pago".
Existia algo entre os dois que
lembrasse amizade? Moreira Salles dá a entender que sim. Fala,
ainda, em cumplicidade, respeito,
fidelidade. Só que, às tantas, o dinheiro entrou na história -e,
aqui, o relacionamento do cineasta aristocrático com o jovem excluído perdeu tudo o que pudesse
ter de inovador ou cívico. As coisas voltaram para o ponto de sempre. O dono do capital fez uma
oferta, e o morador do morro
aceitou.
Se na Renascença os Medici financiavam os melhores artistas
da época, Moreira Salles escolheu
bancar aquele que já se declarou
"o melhor bandido do Brasil".
Encomendou-lhe não uma pintura, mas um livro-testemunho e o
arrependimento. Praticou o que
se pode chamar de mecenato social -o humanista propondo-se
a moldar índoles pela forja do dinheiro.
E de que maneira decidiu quanto pagaria? "Informei-me de que a
bolsa corrente para um escritor
iniciante oscila entre R$ 1.200 e R$
1.500", respondeu na entrevista
de terça-feira à Folha. O mercado
o pautou.
Onde, então, a rebeldia? Onde a
transgressão de um encontro que,
nas palavras de Moreira Salles,
contraria "todas as normas do
que é próprio e impróprio neste
país tão desigual"?
O documentarista talvez tenha
desrespeitado o Código Penal,
mas em que momento subverteu
de fato a ordem dominante? Que
contribuição deu para, como pretendia, renovar, arejar, questionar
as relações entre ricos e pobres no
país -relações que se tornam cada vez mais dramáticas justamente por se guiarem pelas regras de
mercado?
Repito: do ponto de vista individual, não há o que julgar na atitude do cineasta. É impossível medir quanto de esperança, idealismo, dor e culpa motivam o coração alheio. Mas também é impossível deixar de ver que a lógica
cruel responsável pela separação
social de Marcinho VP e João Moreira Salles permanece rigorosamente intocada.
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