São Paulo, sexta-feira, 03 de março de 2000


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CINEMA - ESTRÉIAS
"Um Só Pecado" é Truffaut com frescor

CARLOS ADRIANO
especial para a Folha

"Um Só Pecado" trata de adultério, mas não tem nada a ver com os rotineiros melodramas e as atrações fatais de Hollywood. Consciência da carpintaria, gêneros fluidos e a ausência de catarse terapêutica e punitiva fazem com que, passados 36 anos de seu lançamento, "La Peau Douce" volte com frescor.
O diretor François Truffaut (1932-1984), um dos artífices da nouvelle vague, está aqui no registro de crítico de Cahiers du Cinéma e cineasta de "Atire no Pianista" (60) e "Jules e Jim" (61).
Na trama, o escritor Pierre Lacheny (Jean Desailly) vai a Lisboa, a bordo de um avião da Pan Air do Brasil, para dar palestra sobre Balzac e se apaixonar pela aeromoça Nicole (Françoise Dorléac, irmã de Catherine Deneuve, morta em acidente de carro em 67). A partir daí, ele luta para conciliar sua paixão com os deveres de intelectual e homem casado.
Lacheny, que escreve o livro "Balzac e o Dinheiro", aparece na televisão e apresenta num cinema de província o filme de Marc Allégret sobre André Gide, é um homem que amava e usava as mulheres (o final, avesso ao moralismo americano, afirma o olhar da mulher como sujeito de suas ações e destino).
A decupagem do filme permite "acidentes" estranhos ao olhar viciado de hoje. São "falhas" que Godard instituiu como norma gramatical em seus filmes mas que Truffaut usa em poucos momentos de "Um Só Pecado": cortes abruptos, rápidas panorâmicas, falsa continuidade de cenas.
Esse "desleixo" formal é uma das molas de Truffaut contra o mito industrial de perfeccionismo técnico, fazendo o filme respirar como organismo vivo. Segue o sentido de urgência da história (já no início temos a correria contra o atraso do vôo) e do prosaico e do acaso (fatos que mudam e truncam o rumo das coisas).
Em "Um Só Pecado", a colaboração de Truffaut com um fotógrafo e um músico remete à parceria destes com Godard, que naquele ano de 1964 realizou "Uma Mulher Casada".
A extraordinária fotografia em preto-e-branco e os elétricos movimentos de câmera de Raoul Coutard são uma marca pessoal (por exemplo, a chegada ao bar, a descida pelo elevador). As panorâmicas no apartamento lembram "Uma Mulher É uma Mulher" (Godard, 1961). A trilha de Georges Delerue exprime o ânimo das situações (como, ao conseguir o encontro com a aeromoça, Lacheny comemora acendendo as luzes do quarto e a música vai num crescendo de entusiasmo). Um dos temas cita a música de "O Desprezo" (Godard, 1963).
Se para esses seres à deriva o mundo frágil da ilusão desaba e não decola, um bom símbolo é a breve e evanescente fusão da imagem de Lacheny e Nicole se beijando com a do avião dando voltas na pista.


Avaliação:    

Filme: Um Só Pecado (La Peau Douce) Direção: François Truffaut Produção: França, 1964 Com: Françoise Dorléac, Jean Desailly, Nelly Benedetti Quando: a partir de hoje, no Cinesesc


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