São Paulo, sábado, 03 de março de 2007

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crítica

A narrativa se curva sobre si mesma

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Em "Biografia de Tadeo Isidoro Cruz", Jorge Luis Borges narra a história de um combatente do Exército argentino que, no momento de enfrentar o inimigo, acaba por identificar-se com ele:
"Compreendeu que um destino não é melhor do que outro, mas que todo homem deve aceitar o que leva dentro de si. Compreendeu seu íntimo destino de lobo, não de cão gregário. Compreendeu que o outro era ele".
Como se sabe, para Borges é precária e ilusória a fronteira que divide realidade e ficção. Tanto faz que a história de Tadeo Isidoro tenha ou não acontecido. O que importa é que ele tenha visto a si próprio nos olhos do inimigo e que, na vida ou fora dela, somos sempre nós mesmos o outro a quem imaginamos odiar.
Nos romances de Bernardo Carvalho, geralmente também há uma única identidade fragmentada que salta de um personagem a outro, do narrador ao protagonista, de um tempo a outro, de um espaço a outro.
A narrativa se curva sobre si mesma, fingindo, de forma verossímil, que vai desembocar em algum lugar para, no ponto culminante, mostrar que ainda estamos no mesmo ponto, embora os rostos possam ter mudado.
Em "O Sol se Põe em São Paulo", um narrador que renega sua ascendência japonesa e que quer viver de literatura, mas só consegue ser redator publicitário, acaba por finalmente tornar-se escritor ao fingir que está apenas contando uma história sobre suas dificuldades com a escrita.
Também se descobre fatalmente vinculado ao Japão e à sua cultura no momento em que realiza seu "íntimo destino" de ser o outro, a partir dos relatos de uma japonesa que também finge ser outra pessoa. Tudo é tão igualmente falso e verdadeiro que se torna inevitável a questão sobre o próprio estatuto da verdade. A história e a História parecem estar em todos os lugares, menos nos fatos.
Ou os fatos que constituem a História são meramente estradas marginais às narrativas que escolhemos contar. Neste último livro de Bernardo Carvalho, como o narrador é também um escritor, o romance assume a todo o momento o papel que caberia à crítica e comenta a si próprio: "O melhor escritor é sempre o que nunca escreveu nada"; "No fundo, sou um moralista. O mundo está cheio deles. É um azar quando se tornam escritores"; "A literatura é o que não se vê. A literatura se engana. Enquanto os escritores escrevem, as histórias acontecem em outro lugar". Então, aquilo que estamos lendo também finge ser literatura e a história, na verdade, está acontecendo em outro lugar? Mas afinal, é esse o tipo de dúvida que mais tem valor para nós, leitores. Muito mais do que saber quem matou ou quem morreu. E nesta história há espaço de sobra para investigações e jogos de dedução, já que a trama acontece no Japão, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), envolvendo traição, delação e a marcada hierarquia social japonesa.
Aliás, é justamente nesse ponto que a narrativa às vezes se deixa enovelar justamente por aquilo que ela critica: fatos demais, peripécias demais, quando poderia talvez [ ] manter-se sobre um fio de navalha mais afiado. Mas isso também pode ser só mais uma peça pregada pelo narrador/autor para desviar nossa atenção do principal: existem muito mais mentiras nos fatos e verdades nas narrativas do que supõe a nossa astúcia vã.


O SOL SE PÕE EM SÃO PAULO     
Autor: Bernardo Carvalho
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 34 (168 págs.)


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