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crítica
A narrativa se curva sobre si mesma
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Em "Biografia de Tadeo Isidoro Cruz",
Jorge Luis Borges
narra a história de um combatente do Exército argentino que, no momento de enfrentar o inimigo, acaba por
identificar-se com ele:
"Compreendeu que um destino não é melhor do que outro, mas que todo homem deve aceitar o que leva dentro
de si. Compreendeu seu íntimo destino de lobo, não de
cão gregário. Compreendeu
que o outro era ele".
Como se sabe, para Borges
é precária e ilusória a fronteira que divide realidade e
ficção. Tanto faz que a história de Tadeo Isidoro tenha
ou não acontecido. O que importa é que ele tenha visto a
si próprio nos olhos do inimigo e que, na vida ou fora
dela, somos sempre nós mesmos o outro a quem imaginamos odiar.
Nos romances de Bernardo Carvalho, geralmente
também há uma única identidade fragmentada que salta
de um personagem a outro,
do narrador ao protagonista,
de um tempo a outro, de um
espaço a outro.
A narrativa se curva sobre
si mesma, fingindo, de forma
verossímil, que vai desembocar em algum lugar para, no
ponto culminante, mostrar
que ainda estamos no mesmo ponto, embora os rostos
possam ter mudado.
Em "O Sol se Põe em São
Paulo", um narrador que renega sua ascendência japonesa e que quer viver de literatura, mas só consegue ser
redator publicitário, acaba
por finalmente tornar-se escritor ao fingir que está apenas contando uma história
sobre suas dificuldades com
a escrita.
Também se descobre fatalmente vinculado ao Japão e à
sua cultura no momento em
que realiza seu "íntimo destino" de ser o outro, a partir
dos relatos de uma japonesa
que também finge ser outra
pessoa. Tudo é tão igualmente falso e verdadeiro que se
torna inevitável a questão
sobre o próprio estatuto da
verdade. A história e a História parecem estar em todos
os lugares, menos nos fatos.
Ou os fatos que constituem a
História são meramente estradas marginais às narrativas que escolhemos contar.
Neste último livro de Bernardo Carvalho, como o narrador é também um escritor,
o romance assume a todo o
momento o papel que caberia à crítica e comenta a si
próprio: "O melhor escritor é
sempre o que nunca escreveu nada"; "No fundo, sou
um moralista. O mundo está
cheio deles. É um azar quando se tornam escritores"; "A
literatura é o que não se vê. A
literatura se engana. Enquanto os escritores escrevem, as histórias acontecem
em outro lugar". Então, aquilo que estamos lendo também finge ser literatura e a
história, na verdade, está
acontecendo em outro lugar? Mas afinal, é esse o tipo
de dúvida que mais tem valor
para nós, leitores. Muito
mais do que saber quem matou ou quem morreu. E nesta
história há espaço de sobra
para investigações e jogos de
dedução, já que a trama
acontece no Japão, durante a
Segunda Guerra Mundial
(1939-1945), envolvendo
traição, delação e a marcada
hierarquia social japonesa.
Aliás, é justamente nesse
ponto que a narrativa às vezes se deixa enovelar justamente por aquilo que ela critica: fatos demais, peripécias
demais, quando poderia talvez [ ] manter-se sobre um fio
de navalha mais afiado.
Mas isso também pode ser
só mais uma peça pregada
pelo narrador/autor para
desviar nossa atenção do
principal: existem muito
mais mentiras nos fatos e
verdades nas narrativas do
que supõe a nossa astúcia vã.
O SOL SE PÕE EM SÃO PAULO
Autor: Bernardo Carvalho
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 34 (168 págs.)
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