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"Há uma ofensiva reacionária no país"
O filósofo e poeta Antonio Cicero diz que é preciso defender a modernidade e a razão contra ataques da esquerda e da direita
Cicero critica o artigo do filósofo Renato Janine Ribeiro e a "pretensão", para ele perigosa, de "relativizar a razão pelo sentimento"
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
O filósofo e poeta Antonio
Cicero diz que há uma ofensiva
reacionária no Brasil, que se expressa numa crítica à razão e às
conquistas da modernidade.
Para o autor de livros de ensaios como "Finalidades Sem
Fim" (Companhia das Letras) e
de letras de canções como "O
Último Romântico", não se trata de tomar o partido da esquerda contra a direita nessa
batalha -pois, ele diz, ambas
podem andar de mãos dadas no
desprezo à democracia, tratada
pela esquerda como um sistema "formal", expressão cujo
significado facilmente se converte em "ilusório" ou "falso".
"A esquerda, de maneira geral, está longe de defender as
conquistas da modernidade: ao
contrário, ela é a primeira a
tentar desmoralizá-las. Ora,
quem se beneficia com isso, senão exatamente os reacionários antimodernos?", diz.
Cícero comenta a entrevista
do professor da PUC-SP Luiz
Felipe Pondé, publicada em 7
de janeiro, na qual comentava o
fracasso da promessa de felicidade e progresso advinda com a
modernidade e propunha uma
atitude de "dúvida conservadora". Discute também o artigo do
filósofo Renato Janine Ribeiro,
publicado no Mais! em 18 de
fevereiro, no qual o professor
defendia a idéia de que os sentimentos também deveriam
exercer um papel crítico sobre
a razão.
FOLHA - Você acredita que está em
cena hoje uma "ofensiva da direita",
do conservadorismo. Onde e como
ela se dá?
ANTONIO CICERO - Creio que estamos testemunhando, de fato,
uma grande ofensiva ideológica
por parte dos conservadores
ou, melhor dizendo, dos reacionários, uma vez que se trata de
pessoas menos interessadas
em conservar alguma coisa do
que em retornar a um passado
idealizado.
Penso que deve ser reconhecido ao professor Luiz Felipe
Pondé o mérito de ter, na sua
entrevista à Folha, corretamente definido os campos em
luta. Tendo em mente que, onde se lê "conservador", deve-se
ler "reacionário", trata-se, de
fato, de uma "peleja entre o
pensamento conservador e a
modernidade".
Curiosamente, Pondé inverte o sentido dessa peleja, ao
contrastar a "dúvida conservadora" à "certeza moderna".
Ora, a primeira característica
do pensamento moderno é o
contrário da certeza, isto é, a
dúvida e a crítica universais, e a
característica dominante do
pensamento pré-moderno
-por exemplo, do pensamento
da Idade Média, que, segundo o
próprio Pondé, era "tão boa"-
é a vigência da fé, que não passa
de uma certeza inteiramente
destituída de fundamento.
Pois bem, o pensamento reacionário é pré-modernista. A
luta, portanto, é entre, por um
lado, a modernidade, que garante, através da institucionalização de sociedades laicas e
abertas, a dúvida e a crítica, que
constituem a racionalidade, e,
por outro lado, o pré-modernismo, que, nostálgico da comunidade religiosa fechada,
sonha com regimes teocráticos, em que a dúvida e a crítica
são reprimidas pelo terror.
FOLHA - Por que essa ofensiva o incomoda?
CICERO - Porque é concebível
que a demagogia reacionária e
religiosa, aliada ao terrorismo,
também reacionário e religioso, consiga piorar muito o mundo. Quem poderia imaginar
que, logo nos Estados Unidos, o
Congresso aprovaria no ano
passado uma lei proposta por
Bush que, em determinados casos, põe fora de ação um dos
fundamentos do Estado de Direito, que é o habeas corpus, e
que admite a tortura?
Fico mais do que incomodado, fico indignado com semelhantes tentativas de destruir
aquilo que foi conquistado a
duras penas pela racionalidade
moderna: o Estado de Direito, a
livre expressão do pensamento,
a maximização da liberdade individual, a abertura do mundo a
novas possibilidades, a diversidade de culturas e formas de vida, a pluralidade de expressões
eróticas, a autonomia da ciência, a autonomia da arte etc.
FOLHA - A esquerda tem sua parcela de responsabilidade nessa "virada" ideológica recente?
CICERO - Sem dúvida: tanto as
esquerdas marxistas quanto as
"novas" esquerdas. Desde pelo
menos Marx, a contradição que
aponto, entre o pensamento
conservador ou reacionário e o
pensamento moderno, é erroneamente relegada a segundo
plano, quando não a uma "superestrutura" epifenomênica.
A partir de dogmas materialistas e economicistas, o que conta para os marxistas são as contradições nas relações de produção. Resultado: todas as conquistas da racionalidade moderna que acabo de mencionar
são tidas como relativamente
espúrias, pertencentes não à
democracia simplesmente,
mas à "democracia burguesa",
que, por sua vez, é tida como
meramente formal. E, num piscar d'olhos, "formal" passa a
significar "ilusório", "falso" ou
"mentiroso". A idéia geral é que
somente quanto o proletariado
ou o "povo" estiver no poder
haverá democracia real.
Compreende-se por que
quem pensa assim possa até
usar, para chegar ao poder, a
democracia formal, mas não a
respeite, como não respeita as
conquistas da racionalidade
moderna. É o que explica o terror (no fundo, pré-modernista)
das ditaduras soviética, chinesa, cambojana, cubana etc.; como também explica o mensalão
e o entusiasmo de tantos marxistas pelo populismo chavista.
Quanto às "novas" esquerdas
-os "soixante-huitards" ou
"pós-modernos" ou "pós-estruturalistas"-, creio que ocorreu o seguinte. Apesar de terem
se decepcionado com a esquerda marxista, preferiram abandoná-la de cabeça erguida, trocando o marxismo por uma filosofia pretensamente mais radical do que ele, pretensamente
ainda mais capaz de diagnosticar em profundidade e fundamentar o desprezo que sentiam
pelo mundo moderno.
Buscaram-na sobretudo em
Heidegger. Nele, não só encontraram outra racionalização intelectual para o desdém por
aquilo que, desde o marxismo,
já haviam tido como o embuste
do Estado de Direito, da democracia formal etc., mas mais
ainda: encontraram argumentos para neutralizar os conceitos de humanidade, de subjetividade, de razão.
Ou seja, a esquerda, de maneira geral, está longe de defender as conquistas da modernidade: ao contrário, ela é a primeira a tentar desmoralizá-las.
Ora, quem se beneficia com isso, senão exatamente os reacionários antimodernos? Objetivamente, o marxismo e o pós-modernismo dão as mãos ao
pré-modernismo cristão e islâmico contra a racionalidade
moderna.
É hora de rejeitar tanto a demagogia e o romantismo revolucionários quanto a demagogia e o romantismo reacionários, e de defender, em escala
mundial, um reformismo profundo e conseqüente. É preciso
lutar pela consolidação e o
aperfeiçoamento de instituições internacionais que assegurem o respeito universal aos
direitos humanos, que devem
incluir a garantia de um mínimo de condições dignas de vida
a todos.
FOLHA - O artigo do filósofo Renato Janine Ribeiro, publicado pelo caderno Mais!, parece suspender por
um momento a defesa desse "respeito universal aos direitos humanos", ainda que apenas na expressão de um sentimento e de uma dúvida. Como você viu o argumento
por ele apresentado?
CICERO - O artigo do Janine me
deixou perplexo. Em comum
com Pondé, ele manifesta certa
nostalgia da Idade Média, ao
desejar "suplícios medievais"
para os assassinos do menino
João Hélio. Quero crer que ele
não pense realmente assim, e
que Janine se tenha deixado levar pelo calor da emoção momentânea da revolta.
De todo modo, considero intolerável, por exemplo, a afirmação de que é preciso criticar
os sentimentos pela razão; e a
razão, pelos sentimentos. Só a
razão pode criticar a si própria,
pois ela é a própria crítica e jamais poderia ser criticada pelos
sentimentos, que são pura positividade e que diferem de uma
pessoa para outra, quando não,
na mesma pessoa, de um momento para o outro. A pretensão a relativizar a razão pelo
sentimento, se levada a sério,
poria Janine, de fato, no mesmo nível de irracionalismo que
Pondé.
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