São Paulo, sábado, 03 de março de 2007

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"Há uma ofensiva reacionária no país"

O filósofo e poeta Antonio Cicero diz que é preciso defender a modernidade e a razão contra ataques da esquerda e da direita

Cicero critica o artigo do filósofo Renato Janine Ribeiro e a "pretensão", para ele perigosa, de "relativizar a razão pelo sentimento"


RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

O filósofo e poeta Antonio Cicero diz que há uma ofensiva reacionária no Brasil, que se expressa numa crítica à razão e às conquistas da modernidade.
Para o autor de livros de ensaios como "Finalidades Sem Fim" (Companhia das Letras) e de letras de canções como "O Último Romântico", não se trata de tomar o partido da esquerda contra a direita nessa batalha -pois, ele diz, ambas podem andar de mãos dadas no desprezo à democracia, tratada pela esquerda como um sistema "formal", expressão cujo significado facilmente se converte em "ilusório" ou "falso".
"A esquerda, de maneira geral, está longe de defender as conquistas da modernidade: ao contrário, ela é a primeira a tentar desmoralizá-las. Ora, quem se beneficia com isso, senão exatamente os reacionários antimodernos?", diz.
Cícero comenta a entrevista do professor da PUC-SP Luiz Felipe Pondé, publicada em 7 de janeiro, na qual comentava o fracasso da promessa de felicidade e progresso advinda com a modernidade e propunha uma atitude de "dúvida conservadora". Discute também o artigo do filósofo Renato Janine Ribeiro, publicado no Mais! em 18 de fevereiro, no qual o professor defendia a idéia de que os sentimentos também deveriam exercer um papel crítico sobre a razão.

 

FOLHA - Você acredita que está em cena hoje uma "ofensiva da direita", do conservadorismo. Onde e como ela se dá?
ANTONIO CICERO -
Creio que estamos testemunhando, de fato, uma grande ofensiva ideológica por parte dos conservadores ou, melhor dizendo, dos reacionários, uma vez que se trata de pessoas menos interessadas em conservar alguma coisa do que em retornar a um passado idealizado.
Penso que deve ser reconhecido ao professor Luiz Felipe Pondé o mérito de ter, na sua entrevista à Folha, corretamente definido os campos em luta. Tendo em mente que, onde se lê "conservador", deve-se ler "reacionário", trata-se, de fato, de uma "peleja entre o pensamento conservador e a modernidade".
Curiosamente, Pondé inverte o sentido dessa peleja, ao contrastar a "dúvida conservadora" à "certeza moderna". Ora, a primeira característica do pensamento moderno é o contrário da certeza, isto é, a dúvida e a crítica universais, e a característica dominante do pensamento pré-moderno -por exemplo, do pensamento da Idade Média, que, segundo o próprio Pondé, era "tão boa"- é a vigência da fé, que não passa de uma certeza inteiramente destituída de fundamento.
Pois bem, o pensamento reacionário é pré-modernista. A luta, portanto, é entre, por um lado, a modernidade, que garante, através da institucionalização de sociedades laicas e abertas, a dúvida e a crítica, que constituem a racionalidade, e, por outro lado, o pré-modernismo, que, nostálgico da comunidade religiosa fechada, sonha com regimes teocráticos, em que a dúvida e a crítica são reprimidas pelo terror.

FOLHA - Por que essa ofensiva o incomoda?
CICERO -
Porque é concebível que a demagogia reacionária e religiosa, aliada ao terrorismo, também reacionário e religioso, consiga piorar muito o mundo. Quem poderia imaginar que, logo nos Estados Unidos, o Congresso aprovaria no ano passado uma lei proposta por Bush que, em determinados casos, põe fora de ação um dos fundamentos do Estado de Direito, que é o habeas corpus, e que admite a tortura?
Fico mais do que incomodado, fico indignado com semelhantes tentativas de destruir aquilo que foi conquistado a duras penas pela racionalidade moderna: o Estado de Direito, a livre expressão do pensamento, a maximização da liberdade individual, a abertura do mundo a novas possibilidades, a diversidade de culturas e formas de vida, a pluralidade de expressões eróticas, a autonomia da ciência, a autonomia da arte etc.

FOLHA - A esquerda tem sua parcela de responsabilidade nessa "virada" ideológica recente?
CICERO -
Sem dúvida: tanto as esquerdas marxistas quanto as "novas" esquerdas. Desde pelo menos Marx, a contradição que aponto, entre o pensamento conservador ou reacionário e o pensamento moderno, é erroneamente relegada a segundo plano, quando não a uma "superestrutura" epifenomênica. A partir de dogmas materialistas e economicistas, o que conta para os marxistas são as contradições nas relações de produção. Resultado: todas as conquistas da racionalidade moderna que acabo de mencionar são tidas como relativamente espúrias, pertencentes não à democracia simplesmente, mas à "democracia burguesa", que, por sua vez, é tida como meramente formal. E, num piscar d'olhos, "formal" passa a significar "ilusório", "falso" ou "mentiroso". A idéia geral é que somente quanto o proletariado ou o "povo" estiver no poder haverá democracia real.
Compreende-se por que quem pensa assim possa até usar, para chegar ao poder, a democracia formal, mas não a respeite, como não respeita as conquistas da racionalidade moderna. É o que explica o terror (no fundo, pré-modernista) das ditaduras soviética, chinesa, cambojana, cubana etc.; como também explica o mensalão e o entusiasmo de tantos marxistas pelo populismo chavista.
Quanto às "novas" esquerdas -os "soixante-huitards" ou "pós-modernos" ou "pós-estruturalistas"-, creio que ocorreu o seguinte. Apesar de terem se decepcionado com a esquerda marxista, preferiram abandoná-la de cabeça erguida, trocando o marxismo por uma filosofia pretensamente mais radical do que ele, pretensamente ainda mais capaz de diagnosticar em profundidade e fundamentar o desprezo que sentiam pelo mundo moderno.
Buscaram-na sobretudo em Heidegger. Nele, não só encontraram outra racionalização intelectual para o desdém por aquilo que, desde o marxismo, já haviam tido como o embuste do Estado de Direito, da democracia formal etc., mas mais ainda: encontraram argumentos para neutralizar os conceitos de humanidade, de subjetividade, de razão. Ou seja, a esquerda, de maneira geral, está longe de defender as conquistas da modernidade: ao contrário, ela é a primeira a tentar desmoralizá-las. Ora, quem se beneficia com isso, senão exatamente os reacionários antimodernos? Objetivamente, o marxismo e o pós-modernismo dão as mãos ao pré-modernismo cristão e islâmico contra a racionalidade moderna.
É hora de rejeitar tanto a demagogia e o romantismo revolucionários quanto a demagogia e o romantismo reacionários, e de defender, em escala mundial, um reformismo profundo e conseqüente. É preciso lutar pela consolidação e o aperfeiçoamento de instituições internacionais que assegurem o respeito universal aos direitos humanos, que devem incluir a garantia de um mínimo de condições dignas de vida a todos.

FOLHA - O artigo do filósofo Renato Janine Ribeiro, publicado pelo caderno Mais!, parece suspender por um momento a defesa desse "respeito universal aos direitos humanos", ainda que apenas na expressão de um sentimento e de uma dúvida. Como você viu o argumento por ele apresentado?
CICERO -
O artigo do Janine me deixou perplexo. Em comum com Pondé, ele manifesta certa nostalgia da Idade Média, ao desejar "suplícios medievais" para os assassinos do menino João Hélio. Quero crer que ele não pense realmente assim, e que Janine se tenha deixado levar pelo calor da emoção momentânea da revolta.
De todo modo, considero intolerável, por exemplo, a afirmação de que é preciso criticar os sentimentos pela razão; e a razão, pelos sentimentos. Só a razão pode criticar a si própria, pois ela é a própria crítica e jamais poderia ser criticada pelos sentimentos, que são pura positividade e que diferem de uma pessoa para outra, quando não, na mesma pessoa, de um momento para o outro. A pretensão a relativizar a razão pelo sentimento, se levada a sério, poria Janine, de fato, no mesmo nível de irracionalismo que Pondé.


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