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DRAUZIO VARELLA
Seu Araújo
No meio da balbúrdia, mantinha o ar enfadado do funcionário público que espera a hora passar
SEU ARAÚJO fala com sotaque de
negro velho de terreiro de umbanda.
Os 30 anos de trabalho duro na cadeia não lhe tiraram a vaidade de
calçar sapato de verniz, usar calça
com vinco e camisas impecavelmente passadas por ele mesmo nem
fizeram com que ele perdesse o
amor pelas plantas, das quais sempre cuidou com zelo em sua casinha
no Tatuapé.
Ainda jovem, foi contratado para
abrir e fechar porta no Carandiru,
onde trabalhou até o dia da implosão. Sempre atento à sabedoria dos
mais velhos, apesar do início humilde, chegou a diretor-geral do pavilhão 8, posto para o qual eram designados apenas os mais hábeis, porque lá cumpriam pena os reincidentes; impossível manter a cadeia em
paz sem controlá-los.
Em 1989, quando o conheci, passava o dia num banquinho junto à
entrada do pavilhão, de olho no vaivém infernal dos detentos que entravam apressados na direção das
celas e saíam para o pátio interno e o
campo de futebol. Nunca entendi
por que prisioneiros andam em passo acelerado, como se fossem operários atrasados para bater o ponto.
No meio da balbúrdia, mantinha o
ar enfadado do funcionário público
que espera a hora passar. De repente, feito cão de caça que ergue as orelhas e dispara, levantava do banco
para barrar e revistar um transeunte. Era flagrante de contravenção na
certa: porte de droga, faca ou ambas.
Homem de semblante grave e
pouco falar, como convém ao bom
carcereiro, às vezes pendurava um
saco plástico com orégano na grade
do portão e ficava de guarda como se
o tivesse apreendido e não notasse
os olhares de cobiça dos passantes.
Quando cismava com um grupo
de ladrões saindo a caminho do
campo, fingia que o haviam chamado e dava alguns passos para dentro
do pavilhão. Em segundos, o saquinho desaparecia.
Mais tarde, quando o grupo retornava, seu Araújo falava sério:
-E aí, malandragem, fumo forte,
não?
Na chefia, resolvia pessoalmente
as ocorrências mais graves. Subia
nos andares para apartar brigas, revistar celas e acalmar ânimos em
momentos de tensão. Para se antecipar às tentativas de fuga e à execução de algum infeliz, contava com
um grupo secretíssimo de informantes -da sobrevivência dos quais
cuidava com desvelo. Respeitado
por honrar a palavra empenhada,
sabia discernir o momento de favorecer, o de punir e o de perdoar.
Houve uma época em que os colchões do pavilhão estavam em petição de miséria. Muitos eram obrigados a dormir sobre folhas de jornal,
papelão e roupas empilhadas, com o
par de tênis fazendo as vezes de travesseiro. Cansado das reclamações,
seu Araújo não deu trégua ao diretor-geral até ser atendido.
Num final de tarde, 510 colchões
de espuma foram descarregados no
pátio central do 8. Ele ligou para o
diretor:
-Doutor, 510 para 1.200 sentenciados?
O diretor explicou que a secretaria
só havia mandado aqueles. Se os
presos não ficassem satisfeitos, outros pavilhões receberiam a encomenda de bom grado.
Fazer o quê? Se adiasse a decisão,
corria risco de a malandragem assaltar os colchões. Pensou em seguir o
critério de antigüidade no pavilhão
ou de sorteá-los, mas a noite estava
para cair; além disso, a lisura do processo seria fatalmente questionada
pelos perdedores. Quem agüentaria
as reclamações?
Então, convocou os líderes da Faxina, que comandavam os demais
presos:
- Todos no pátio, no lado oposto ao
dos colchões.
Em cinco minutos, os homens se
reuniram. Ele subiu num caixote colocado à meia distância entre os detentos aglomerados e a pilha, para
anunciar em voz alta:
-Recebemos 510 colchões; aliás,
de ótima qualidade. Infelizmente,
vocês são 1.200. Então, é o seguinte:
quem pegar é dele!
Agarrou o caixote e correu para o
lado, enquanto a turba começava a
avançar, enfurecida.
Foi um deus-nos-acuda. Os homens se atiraram sobre a pilha definitivamente decididos a sair dali
com seu colchão; na pior das hipóteses, com um fragmento dele. Voou
espuma de borracha para todos os
lados. No final, no pátio não sobrou
um fragmento sequer.
Quando tudo se acalmou, descontentes com a solução encontrada e
com o fato de não terem sido consultados a respeito dela, os faxineiros
dirigiram-se à sala da chefia:
-Ô, seu Araújo, o senhor não fez o
certo. Devia ter agitado nós.
-E não agitei?
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