São Paulo, sábado, 03 de março de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

DRAUZIO VARELLA

Seu Araújo

No meio da balbúrdia, mantinha o ar enfadado do funcionário público que espera a hora passar

SEU ARAÚJO fala com sotaque de negro velho de terreiro de umbanda.
Os 30 anos de trabalho duro na cadeia não lhe tiraram a vaidade de calçar sapato de verniz, usar calça com vinco e camisas impecavelmente passadas por ele mesmo nem fizeram com que ele perdesse o amor pelas plantas, das quais sempre cuidou com zelo em sua casinha no Tatuapé.
Ainda jovem, foi contratado para abrir e fechar porta no Carandiru, onde trabalhou até o dia da implosão. Sempre atento à sabedoria dos mais velhos, apesar do início humilde, chegou a diretor-geral do pavilhão 8, posto para o qual eram designados apenas os mais hábeis, porque lá cumpriam pena os reincidentes; impossível manter a cadeia em paz sem controlá-los.
Em 1989, quando o conheci, passava o dia num banquinho junto à entrada do pavilhão, de olho no vaivém infernal dos detentos que entravam apressados na direção das celas e saíam para o pátio interno e o campo de futebol. Nunca entendi por que prisioneiros andam em passo acelerado, como se fossem operários atrasados para bater o ponto.
No meio da balbúrdia, mantinha o ar enfadado do funcionário público que espera a hora passar. De repente, feito cão de caça que ergue as orelhas e dispara, levantava do banco para barrar e revistar um transeunte. Era flagrante de contravenção na certa: porte de droga, faca ou ambas.
Homem de semblante grave e pouco falar, como convém ao bom carcereiro, às vezes pendurava um saco plástico com orégano na grade do portão e ficava de guarda como se o tivesse apreendido e não notasse os olhares de cobiça dos passantes.
Quando cismava com um grupo de ladrões saindo a caminho do campo, fingia que o haviam chamado e dava alguns passos para dentro do pavilhão. Em segundos, o saquinho desaparecia.
Mais tarde, quando o grupo retornava, seu Araújo falava sério:
-E aí, malandragem, fumo forte, não?
Na chefia, resolvia pessoalmente as ocorrências mais graves. Subia nos andares para apartar brigas, revistar celas e acalmar ânimos em momentos de tensão. Para se antecipar às tentativas de fuga e à execução de algum infeliz, contava com um grupo secretíssimo de informantes -da sobrevivência dos quais cuidava com desvelo. Respeitado por honrar a palavra empenhada, sabia discernir o momento de favorecer, o de punir e o de perdoar.
Houve uma época em que os colchões do pavilhão estavam em petição de miséria. Muitos eram obrigados a dormir sobre folhas de jornal, papelão e roupas empilhadas, com o par de tênis fazendo as vezes de travesseiro. Cansado das reclamações, seu Araújo não deu trégua ao diretor-geral até ser atendido.
Num final de tarde, 510 colchões de espuma foram descarregados no pátio central do 8. Ele ligou para o diretor:
-Doutor, 510 para 1.200 sentenciados?
O diretor explicou que a secretaria só havia mandado aqueles. Se os presos não ficassem satisfeitos, outros pavilhões receberiam a encomenda de bom grado.
Fazer o quê? Se adiasse a decisão, corria risco de a malandragem assaltar os colchões. Pensou em seguir o critério de antigüidade no pavilhão ou de sorteá-los, mas a noite estava para cair; além disso, a lisura do processo seria fatalmente questionada pelos perdedores. Quem agüentaria as reclamações?
Então, convocou os líderes da Faxina, que comandavam os demais presos:
- Todos no pátio, no lado oposto ao dos colchões.
Em cinco minutos, os homens se reuniram. Ele subiu num caixote colocado à meia distância entre os detentos aglomerados e a pilha, para anunciar em voz alta:
-Recebemos 510 colchões; aliás, de ótima qualidade. Infelizmente, vocês são 1.200. Então, é o seguinte: quem pegar é dele!
Agarrou o caixote e correu para o lado, enquanto a turba começava a avançar, enfurecida.
Foi um deus-nos-acuda. Os homens se atiraram sobre a pilha definitivamente decididos a sair dali com seu colchão; na pior das hipóteses, com um fragmento dele. Voou espuma de borracha para todos os lados. No final, no pátio não sobrou um fragmento sequer.
Quando tudo se acalmou, descontentes com a solução encontrada e com o fato de não terem sido consultados a respeito dela, os faxineiros dirigiram-se à sala da chefia:
-Ô, seu Araújo, o senhor não fez o certo. Devia ter agitado nós.
-E não agitei?


Texto Anterior: Erudito: Filme lembra hibridez de Gnatalli
Próximo Texto: "Há uma ofensiva reacionária no país"
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.