São Paulo, segunda-feira, 03 de março de 2008

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NELSON ASCHER

Como, quando e onde


Malgrado sua semelhança estrutural, esquerda e direita se diferenciam em alguns aspectos relevantes

ESQUERDA E direita são maneiras de ver o mundo voltadas para a ocupação da esfera pública e dispostas a sacrificar a esfera privada a seus interesses. Tanto para uma como para a outra, quem não é seu partidário deve, necessariamente, sê-lo do campo oposto. Ambas têm em comum descrerem seja da neutralidade, seja da possibilidade de existirem modos de pensar que não ponham a política no centro. Qualquer enfoque distinto é logo traduzido em seus termos. Uma pessoa que se defina, por exemplo, como cristã precisa ser escrutinada: trata-se de um reacionário ou terá aderido à Teologia da Libertação.
De forma similar, qualquer elemento da vida individual ou social adquire seu verdadeiro sentido apenas de acordo com a resposta à pergunta básica: a que e a quem isto serve, ao progresso ou à reação?
Daí que, sobretudo para a esquerda, não possa existir nada fora dela que não seja a direita, aliás, extrema-direita, ou melhor, o inimigo, assim como, aos olhos de uma religião imperialista, tampouco existem outras religiões, diferentes entre si, além de agnósticos, ateus e indiferentes -há somente pagãos e infiéis.
Embora muitos se valham de alguns de seus conceitos para montar sua própria caixa desencontrada de ferramentas interpretativas, a maioria vive sem requerer explicações totalizantes. E a maioria, é claro, também não está em guerra com a ordem das coisas nem pretende alterá-la: um ajuste aqui, uma adaptação ali lhe bastam. Não é o caso de afirmar que as ideologias inexistem ou terminaram, mas de constatar que elas sempre foram paixão minoritária.
Malgrado sua semelhança estrutural, esquerda e direita se diferenciam em alguns aspectos relevantes, o principal dos quais talvez seja o seguinte: a esquerda propõe uma certa universalidade (geralmente falsa) que seria superior a todos os particularismos, enquanto a direita fala em nome de algum particularismo que pretende se sobrepor aos rivais.
Tipicamente, no âmbito da questão nacional, esquerdistas pregariam o internacionalismo, e direitistas, a hegemonia de um país ou de uma aliança. Mas essa contraposição raramente se sustenta na prática, pois se, ensaios de "governança mundial" como a ONU só potencializam a influência de ditaduras aferradas a seus particularismos, a hegemonia de nações democráticas ainda constitui a melhor defesa de valores universalistas.
Seja como for, a predisposição direitista, por um lado, é a de selecionar convenientemente fatos que provem a superioridade de seu particularismo, e a esquerdista, por outro, é a de, por meio da manipulação argumentativa, converter seus particularismos de estimação (a URSS, a Argentina durante a Guerra das Malvinas, Cuba, a causa palestina) em universalismos de fancaria.
Como sugeri na coluna da semana passada, esquerda e direita são maneiras totalizantes de pensar o mundo que dificilmente desaparecerão. Quando se imagina que um terremoto histórico as varreu, que os fatos, desmentindo-as, tornaram-nas irrelevantes, elas reaparecem com roupas novas. Porque ambas desprezam os valores essenciais das sociedades abertas, a democracia representativa, a democracia produtiva (o livre mercado de bens e serviços), a autonomia dos indivíduos e o direito destes inclusive a errar, a prudência manda monitorá-las para saber que forma assumiram e por onde andam.
Resumindo conclusões que valem a pena desdobrar no futuro, pode-se afirmar que a direita mais característica nos dias atuais é o fundamentalismo islâmico. Convém sublinhar que ele não coincide com a religião chamada Islã. É uma mutação cujas metas e métodos são, não religiosos, mas políticos, pois, ao contrário das demais religiões, não lhe é suficiente atuar na área de esfera privada: ele almeja a transformação de sociedades inteiras nas quais todos, até os que não o seguem, teriam de se submeter a suas leis.
Quanto à esquerda contemporânea, suas ambições não são menores. A clássica falava, modestamente, em erradicação da miséria e, depois, em justiça social (leia-se: igualitarismo de resultados). Sua pretensão máxima, no entanto, era criar o "novo homem", uma utopia que, de tão nobre, nem sequer recuava diante do extermínio de milhões de homens antigos. Esta não seria alcançada pelo voto, mas através da conquista do Estado por uma elite que, então, para o bem de todos, mesmo dos que não o quisessem, transformaria radicalmente a sociedade. Ninguém hoje acalenta sonhos semelhantes com tanto ardor como a linha-dura dos movimentos ambientalistas.


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