São Paulo, terça-feira, 03 de março de 2009

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

O capitalismo é simpático


É precisamente porque existe riqueza criada que é possível "redistribuir", combatendo a miséria


CURIOSO: EU julgava que Adam Phillips, psicanalista superstar do Reino Unido, era pessoa razoavelmente letrada. Cheguei a ler alguns livros de Phillips, aplaudindo sua erudição e seu humor. Enganei-me. Em artigo para o "Guardian", na companhia da historiadora Barbara Taylor, Phillips desce o pau no sistema capitalista. O capitalismo, diz ele, não permite uma revalorização do amor desinteressado ao próximo. Que bonito, hein?
Diz Phillips que o homem moderno esqueceu uma virtude fundamental. Existem vários nomes para designar essa virtude: "simpatia", "generosidade", "altruísmo", "benevolência", "humanidade", "compaixão". Mas todos esses nomes pretendem um mesmo fim: permitir que nós, homens egoístas, possamos imaginar as provações e as dificuldades de nossos semelhantes, estendendo a eles uma mão amiga.
No fundo, Phillips condena o mundo hobbesiano do Ocidente capitalista, de todos contra todos. Ele prefere um mundo compassivo e humano, onde todos ajudam todos.
Eu não pretendo ensinar coisa nenhuma a Phillips. Mas posso sugerir um autor que está ausente do texto do psicanalista? Um autor que lançou as sementes da compaixão moderna e, ironicamente, do capitalismo moderno também? Esse autor chama-se Adam Smith (1723 -1790).
Na verdade, o texto de Phillips, em seu amor pela "compaixão", parece uma longa cópia da "Teoria dos Sentimentos Morais", obra que Smith publicou em 1759. A ideia que percorre o texto de Smith é simples e poderosa: se existe uma natureza humana comum a todos os seres, ela manifesta-se por meio de "sentimentos" inatos e morais que o homem tem dentro de si. E em que consistem esses sentimentos?
Para Smith, como para Adam Phillips, esses sentimentos manifestam-se na nossa capacidade para, por meio de um exercício de "substituição", nos imaginarmos no lugar dos que mais sofrem. Esses sentimentos morais são a base de qualquer sociedade civilizada: de uma sociedade em que o destino dos nossos semelhantes não nos pode ser completamente indiferente.
Acontece que Adam Smith não publicou apenas a "Teoria dos Sentimentos Morais". Em 1776, Smith voltaria a revisitar o argumento com um livro que, consensualmente, é hoje visto como a bíblia do capitalismo. Falo, claro, de "A Riqueza das Nações", onde Smith pretende demonstrar as virtudes de um sistema de livre comércio. E quais são elas?
A primeira delas, e à imagem do que sucedia na "Teoria dos Sentimentos Morais", é mostrar como a livre troca também faz parte da natureza dos homens. Uma comunidade que seja capaz de mutilar a liberdade econômica dos seus habitantes não está apenas a empobrecer esses habitantes; está a lhes negar uma forma importante de realização humana e pessoal.
Mas existe uma segunda virtude normalmente esquecida: o capitalismo, longe de enfraquecer os "sentimentos" morais que ligam os homens aos seus semelhantes, é a condição primeira para que esses "sentimentos" se realizem de forma prática, e não apenas "sentimental". O livre comércio permite a riqueza das nações; e só pode existir "compaixão" pelos mais pobres quando existe riqueza que nos permita não apenas chorar por eles, mas elevá-los a um estádio tolerável de existência. Diferentemente do contemporâneo Malthus, que temia a explosão demográfica dos pobres, Smith sabia que a única forma de integrá-los numa comunidade próspera era, precisamente, pela criação dessa comunidade próspera, que só a liberdade econômica seria capaz de promover.
Hoje, basta olhar para as sociedades ocidentais para ver como Smith tinha razão. Sim, o capitalismo está longe de ser a resposta milagrosa para os problemas do mundo, desde logo porque só um fanático acredita que existem respostas milagrosas para os problemas do mundo. Mas, parafraseando Churchill sobre a democracia, o capitalismo é o pior sistema econômico, com a exceção de todos os outros. O capitalismo não permite apenas a criação de riqueza; como se vê em qualquer sociedade ocidental, é precisamente porque existe riqueza criada que é possível "redistribuir", combatendo a miséria extrema. Quando não existe riqueza criada, não existe espaço para nenhuma "benevolência" ou "simpatia". Existe só o mundo hobbesiano que Phillips tanto teme: onde nem a sobrevivência está garantida.
Aliás, se dúvidas houvesse, bastaria perguntar a Phillips onde ele preferiria ser pobre: na Inglaterra capitalista ou na anticapitalista Coreia do Norte? Desconfio de que a Inglaterra seja mais simpática.

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