|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
A arte de morrer
"Os Diários de Sylvia Plath 1950-1962", que chega neste mês às livrarias, dá a versão da própria poeta sobre sua vida
Leia a seguir trechos de "Os Diários de Sylvia Plath 1950-1962".
Chega a ser curioso pensar se os
sonhos farão alguma diferença,
ou a "liberdade", ou a "democracia". Acho que não; penso que só
se pensará em comer, onde dormir e como refazer a vida entre os
destroços da humanidade.
Contudo, enquanto a América
morre como o grande Império
Romano morreu, enquanto as legiões tombam e os bárbaros conquistam nossa milionária terra
tenra, estupenda, suculenta como
um bife, cremosa como manteiga,
em algum lugar estará o povo que
de qualquer maneira nunca teve
muita importância em nosso esquema. Na Índia, talvez, ou na
África, eles se erguerão. Muito
tempo transcorrerá até que todos
sejam eliminados. As pessoas vivem em tempos de guerra, sempre viveram. O terror acompanhou a história.
(...) Ah, é duro para mim me reconciliar com isso tudo. Talvez
por isso eu seja uma moça -assim posso viver com mais segurança que os rapazes que conheci
e invejei, ter filhos e instilar neles o
desejo intenso de aprender e
amar a vida que eu jamais chegarei a sentir plenamente, pois não
há tempo, pois não há mais tempo, em vez disso há o medo súbito
e desesperado, o relógio que bate
e a neve que cai de repente demais
após o verão. Certo, sou dramática e meio cínica, indolente e meio
sentimental. Mas nos anos fáceis
poderei amadurecer e descobrir
meu caminho. Agora estou vivendo numa situação crítica. Estamos todos na beira do precipício,
isso exige muito vigor, muita
energia, seguir pela borda, olhar
para baixo, ver a escuridão profunda sem ser capaz de identificar
através da névoa amarelada e fétida o que jaz abaixo do lodo, na lama que escorre cheia de vômito; e
assim sigo em frente, imersa nos
meus pensamentos, escrevendo
muito, tentando achar o centro,
um significado para mim.
Desanimada, incompetente,
despreparada para Joyce, amanhã, entrei na banheira quente,
esfregando a sujeira grudada na
pele e fiquei de molho sentindo o
calor revigorante, eliminando as
tensões e dores do meu sistema.
Vivo pela metade? Ando tão cansada, após a noite passada e o
monte de louça, após a panela de
pressão dos detalhes dos preparativos de última hora -sempre a
idéia de que poderia fazer tudo
melhor, e eu poderia mesmo: deixando todos curiosos, sonho com
isso, devaneio, das brumas surgem faces familiares sorridentes
que me cumprimentam e trocam
olhares entre si, compartilhando
segredos. Uma aspirina atenuou a
dor nos olhos, a dor de cabeça de
fadiga. Melhore na próxima semana -amanhã, repasse dois capítulos, duas horas de discussão
sobre Joyce. Estalando, ele tira o
pulôver. Pele branca, cabelo preto. Esta manhã sonhei com o novo rosto, o único, parece-me, que
tem lindos olhos úmidos escuros,
pele levemente pálida, dourada
com sombras verdes -de mãos
dadas e passando pelos alunos radiantes com uma inefável doçura
e euforia, e depois acordar não solitária na cama mas com o toque
de meu homem, e os rostos nos
nossos amantes sonhados mudam e tremulam na imagem da
manhã como a face refletida num
lago inquieto juntando e juntando seus fragmentos para formar
uma fisionomia ligeiramente trêmula até a placidez final inevitável. Após o suor e a fúria na cama,
nós cansados, entorpecidos, um
lixo -engolindo meia xícara de
café, dando uma mordida na torrada com geléia de ameixa, corpo
melado de suores e secreções e
odores em malhas de lã grossas,
usadas, protetoras. (...) Uma manhã de culpa, jovens malignos,
véus escuros -e eu, lerda, absorvo tudo (...).
Se eu superar este ano, despachando meu demônio quando ele
surgir, dando conta de que ficarei
cansada após vários dias de trabalho e exausta depois de corrigir as
provas, concluindo que trata-se
de um cansaço natural, e não algo
para ser lamentado com horror,
serei capaz, pouco a pouco, de encarar a vida, em vez de fugir
correndo a cada aceno do sofrimento.
O demônio me humilha: faz
com que eu me ajoelhe perante o
reitor da faculdade, do meu chefe
de departamento, de todos, chorando: olhe para mim, maldito,
sou incapaz. Falo dos meus medos para que os outros os alimentem. Preciso assumir uma postura calma e lutar contra o demônio
dentro de mim, sem jamais lhe
dar a dignidade de uma aparição
pública, fugindo dele, sem cair em
suas garras. Trabalharei em minha sala das 9 às 5, em geral, até
perceber que estou me saindo
melhor na sala de aula. De todo
modo, farei coisas relaxantes, lerei outros livros etc. à noite. Permanecerei intacta, distanciada do
emprego, do trabalho. Eles não
podem exigir de mim mais que o
melhor, e só eu sei realmente onde se situam os limites da definição de melhor. Tenho escolha: fugir da vida e me desgraçar para
sempre, pois não posso ser perfeita de cara, sem dor e fracasso, ou
enfrentar a vida em meus próprios termos e "fazer o melhor
possível".
Vi a neve no Smith pela primeira vez. É como qualquer outra neve, mas eis-me aqui, portanto, em
meu quarto. (...) Não dá para me
enganar e escapar à constatação
brutal de que não importa o
quanto você se mostre entusiasmada, não importa a certeza de
que caráter é destino, nada é real,
passado ou futuro, quando a gente fica sozinha no quarto com o
relógio tiquetaqueando alto no
falso brilho ilusório da luz elétrica. E, se você não tem passado ou
futuro, que no final das contas são
os elementos que formam o presente todo, então é bem capaz de
descartar a casca vazia do presente e cometer suicídio.
Texto Anterior: Do outro lado do rio, do lado de cá do coração Próximo Texto: A obra Índice
|