São Paulo, sábado, 03 de abril de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A arte de morrer

"Os Diários de Sylvia Plath 1950-1962", que chega neste mês às livrarias, dá a versão da própria poeta sobre sua vida

Leia a seguir trechos de "Os Diários de Sylvia Plath 1950-1962".

 
Chega a ser curioso pensar se os sonhos farão alguma diferença, ou a "liberdade", ou a "democracia". Acho que não; penso que só se pensará em comer, onde dormir e como refazer a vida entre os destroços da humanidade.
Contudo, enquanto a América morre como o grande Império Romano morreu, enquanto as legiões tombam e os bárbaros conquistam nossa milionária terra tenra, estupenda, suculenta como um bife, cremosa como manteiga, em algum lugar estará o povo que de qualquer maneira nunca teve muita importância em nosso esquema. Na Índia, talvez, ou na África, eles se erguerão. Muito tempo transcorrerá até que todos sejam eliminados. As pessoas vivem em tempos de guerra, sempre viveram. O terror acompanhou a história.
(...) Ah, é duro para mim me reconciliar com isso tudo. Talvez por isso eu seja uma moça -assim posso viver com mais segurança que os rapazes que conheci e invejei, ter filhos e instilar neles o desejo intenso de aprender e amar a vida que eu jamais chegarei a sentir plenamente, pois não há tempo, pois não há mais tempo, em vez disso há o medo súbito e desesperado, o relógio que bate e a neve que cai de repente demais após o verão. Certo, sou dramática e meio cínica, indolente e meio sentimental. Mas nos anos fáceis poderei amadurecer e descobrir meu caminho. Agora estou vivendo numa situação crítica. Estamos todos na beira do precipício, isso exige muito vigor, muita energia, seguir pela borda, olhar para baixo, ver a escuridão profunda sem ser capaz de identificar através da névoa amarelada e fétida o que jaz abaixo do lodo, na lama que escorre cheia de vômito; e assim sigo em frente, imersa nos meus pensamentos, escrevendo muito, tentando achar o centro, um significado para mim.

Desanimada, incompetente, despreparada para Joyce, amanhã, entrei na banheira quente, esfregando a sujeira grudada na pele e fiquei de molho sentindo o calor revigorante, eliminando as tensões e dores do meu sistema. Vivo pela metade? Ando tão cansada, após a noite passada e o monte de louça, após a panela de pressão dos detalhes dos preparativos de última hora -sempre a idéia de que poderia fazer tudo melhor, e eu poderia mesmo: deixando todos curiosos, sonho com isso, devaneio, das brumas surgem faces familiares sorridentes que me cumprimentam e trocam olhares entre si, compartilhando segredos. Uma aspirina atenuou a dor nos olhos, a dor de cabeça de fadiga. Melhore na próxima semana -amanhã, repasse dois capítulos, duas horas de discussão sobre Joyce. Estalando, ele tira o pulôver. Pele branca, cabelo preto. Esta manhã sonhei com o novo rosto, o único, parece-me, que tem lindos olhos úmidos escuros, pele levemente pálida, dourada com sombras verdes -de mãos dadas e passando pelos alunos radiantes com uma inefável doçura e euforia, e depois acordar não solitária na cama mas com o toque de meu homem, e os rostos nos nossos amantes sonhados mudam e tremulam na imagem da manhã como a face refletida num lago inquieto juntando e juntando seus fragmentos para formar uma fisionomia ligeiramente trêmula até a placidez final inevitável. Após o suor e a fúria na cama, nós cansados, entorpecidos, um lixo -engolindo meia xícara de café, dando uma mordida na torrada com geléia de ameixa, corpo melado de suores e secreções e odores em malhas de lã grossas, usadas, protetoras. (...) Uma manhã de culpa, jovens malignos, véus escuros -e eu, lerda, absorvo tudo (...).

Se eu superar este ano, despachando meu demônio quando ele surgir, dando conta de que ficarei cansada após vários dias de trabalho e exausta depois de corrigir as provas, concluindo que trata-se de um cansaço natural, e não algo para ser lamentado com horror, serei capaz, pouco a pouco, de encarar a vida, em vez de fugir correndo a cada aceno do sofrimento.
O demônio me humilha: faz com que eu me ajoelhe perante o reitor da faculdade, do meu chefe de departamento, de todos, chorando: olhe para mim, maldito, sou incapaz. Falo dos meus medos para que os outros os alimentem. Preciso assumir uma postura calma e lutar contra o demônio dentro de mim, sem jamais lhe dar a dignidade de uma aparição pública, fugindo dele, sem cair em suas garras. Trabalharei em minha sala das 9 às 5, em geral, até perceber que estou me saindo melhor na sala de aula. De todo modo, farei coisas relaxantes, lerei outros livros etc. à noite. Permanecerei intacta, distanciada do emprego, do trabalho. Eles não podem exigir de mim mais que o melhor, e só eu sei realmente onde se situam os limites da definição de melhor. Tenho escolha: fugir da vida e me desgraçar para sempre, pois não posso ser perfeita de cara, sem dor e fracasso, ou enfrentar a vida em meus próprios termos e "fazer o melhor possível".

Vi a neve no Smith pela primeira vez. É como qualquer outra neve, mas eis-me aqui, portanto, em meu quarto. (...) Não dá para me enganar e escapar à constatação brutal de que não importa o quanto você se mostre entusiasmada, não importa a certeza de que caráter é destino, nada é real, passado ou futuro, quando a gente fica sozinha no quarto com o relógio tiquetaqueando alto no falso brilho ilusório da luz elétrica. E, se você não tem passado ou futuro, que no final das contas são os elementos que formam o presente todo, então é bem capaz de descartar a casca vazia do presente e cometer suicídio.


Texto Anterior: Do outro lado do rio, do lado de cá do coração
Próximo Texto: A obra
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.