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É TUDO VERDADE
Do outro lado do rio, do lado de cá do coração
FERNANDO BONASSI
COLUNISTA DA FOLHA
Não há nada mais antigo e
aborrecido do que essas discussões sobre "veracidade" e "autoria" num documentário. Após
décadas de manipulação de imagens com os mais variados propósitos, pouca gente duvida de que
há, sim, alguém por trás dessas
coisas, sejam apresentadas como
"jornalismo", "documentarismo", "reality show" ou novelinha
histórica. Essas balelas morais
não deveriam contagiar os artistas ("documentaristas" ou "ficcionistas"), cujo objetivo primeiro será sempre o de causar alguma espécie de comoção ou incômodo em sua audiência.
Há fatos que valem filmes e há
filmes que se transformam em fatos, superando e/ou destruindo
seu objeto original. Até recentemente uma certa sociologia colegial contaminava de "marxices"
mal digeridas parte substancial
do chamado documentarismo
brasileiro, mantendo-o afastado
dos pequenos fenômenos que não
se afinavam com a programática
do diretor/autor e demais intelectuais de sua classe.
Por representarem discursos,
seus personagens nada deviam à
ficção, ainda que fosse "pecado"
falar nessas coisas naquelas épocas. Tais filmes não seriam ruins
se não arrogassem o valor inquestionável de suas análises. Seriam
até excelentes peças de resistência
e propaganda se pudessem questionar-se, além de questionar a
História do país. Poucos fizeram
esse serviço pela maturidade de
nossa expressão audiovisual com
o brilho explosivo de Arthur
Omar, para ficar no melhor
exemplo.
Felizmente o cinema brasileiro
descobriu muitos Brasis nas últimas décadas. Não que tal cinema
seja mais "verdadeiro" ou "real"
do que outros, não é disso que se
trata, mas é certo que o aumento
da curiosidade dos jovens cineastas pelo caos de nossa diversidade
tem possibilitado maior ousadia
criativa e inteligência formal.
Preâmbulos à parte, "Do Outro
Lado do Rio", filme de Lucas
Bambozzi, representa uma das
porções mais nobres dessa novíssima perspectiva de apreensão do
que fizemos de nós mesmos.
Mostra os que transitam pela quase indistinta fronteira do Brasil
com a Guiana Francesa, às beiras
do Oiapoque. É o fim do mundo
da fronteira; uma atmosfera e
gentes sobre as quais você já viu
ou leu sobre: garimpeiros e suas
fantasias de riqueza, prostitutas
mambembes que vagam de um
povoado a outro oferecendo suas
mercadorias indispensáveis; fome, pistolagem, perversões...
Há, no entanto, no ouvido e no
olhar que constituem esse filme,
uma escolha clara por evidenciar
não apenas o resultado social de
um conjunto de forças históricas,
mas como os próprios mitos e a
consciência se formam a partir
dos impulsos e escolhas mais íntimas dos homens e mulheres que
se encontram (ou se desencontram) em relação com esse lugar.
É como se o diretor tivesse a capacidade de perfurar com uma agulha muito fina a torrente do monólogo interior de cada um de
seus personagens, drenando um
caldo vivo de força e espiritualidade, dignificando, a partir desses
pirados e perdidos, toda a experiência humana de embate com a
natureza, o mercado, a sanidade,
a sobrevivência...
Na contramão dos efeitos excessivos, a montagem não se sobrepõe ao que definiu como principal, a essa fluência do contar, essa
espécie de "nostalgia do futuro"
que contagia a todos. O autor, porém, assume sua responsabilidade política e estética, está ali e na
hora, ora propondo possibilidades aos personagens, ora perguntando e ora respondendo, através
da seleção de seus enquadramentos, cores e cortes, o quanto e de
que maneira aquilo tudo o toca.
Como em poucas obras desse tipo, nós entendemos por que se
faz um filme, o que vale a pena ser
filmado de cada um de nós e para
que esse tipo de experiência serve.
É uma clareza que falta à maioria
dos que se dizem cineastas em
seus projetos de filmes. É algo sobre o que a televisãozinha reprodutora de fórmulas dramatúrgicas jamais terá coragem de pensar, pelo menos enquanto esse
"modelo" de comunicação continuar concentracionário como é.
"Do Outro Lado do Rio", por
sua delicada investigação, pelas
qualidades rítmicas, pela síntese
sonora da trilha de Lívio Tragtemberg e Wilson Sukorski, representa ar fresco contra a burrice
em série. Não deixem de ver. É
bom para a saúde visual e mental.
DO OUTRO LADO DO RIO - direção:
Lucas Bambozzi. Brasil, 2004. Quando:
hoje, às 21h, no Cinesesc.
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