São Paulo, sábado, 03 de abril de 2004

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É TUDO VERDADE

Do outro lado do rio, do lado de cá do coração

FERNANDO BONASSI
COLUNISTA DA FOLHA

Não há nada mais antigo e aborrecido do que essas discussões sobre "veracidade" e "autoria" num documentário. Após décadas de manipulação de imagens com os mais variados propósitos, pouca gente duvida de que há, sim, alguém por trás dessas coisas, sejam apresentadas como "jornalismo", "documentarismo", "reality show" ou novelinha histórica. Essas balelas morais não deveriam contagiar os artistas ("documentaristas" ou "ficcionistas"), cujo objetivo primeiro será sempre o de causar alguma espécie de comoção ou incômodo em sua audiência.
Há fatos que valem filmes e há filmes que se transformam em fatos, superando e/ou destruindo seu objeto original. Até recentemente uma certa sociologia colegial contaminava de "marxices" mal digeridas parte substancial do chamado documentarismo brasileiro, mantendo-o afastado dos pequenos fenômenos que não se afinavam com a programática do diretor/autor e demais intelectuais de sua classe.
Por representarem discursos, seus personagens nada deviam à ficção, ainda que fosse "pecado" falar nessas coisas naquelas épocas. Tais filmes não seriam ruins se não arrogassem o valor inquestionável de suas análises. Seriam até excelentes peças de resistência e propaganda se pudessem questionar-se, além de questionar a História do país. Poucos fizeram esse serviço pela maturidade de nossa expressão audiovisual com o brilho explosivo de Arthur Omar, para ficar no melhor exemplo.
Felizmente o cinema brasileiro descobriu muitos Brasis nas últimas décadas. Não que tal cinema seja mais "verdadeiro" ou "real" do que outros, não é disso que se trata, mas é certo que o aumento da curiosidade dos jovens cineastas pelo caos de nossa diversidade tem possibilitado maior ousadia criativa e inteligência formal.
Preâmbulos à parte, "Do Outro Lado do Rio", filme de Lucas Bambozzi, representa uma das porções mais nobres dessa novíssima perspectiva de apreensão do que fizemos de nós mesmos. Mostra os que transitam pela quase indistinta fronteira do Brasil com a Guiana Francesa, às beiras do Oiapoque. É o fim do mundo da fronteira; uma atmosfera e gentes sobre as quais você já viu ou leu sobre: garimpeiros e suas fantasias de riqueza, prostitutas mambembes que vagam de um povoado a outro oferecendo suas mercadorias indispensáveis; fome, pistolagem, perversões...
Há, no entanto, no ouvido e no olhar que constituem esse filme, uma escolha clara por evidenciar não apenas o resultado social de um conjunto de forças históricas, mas como os próprios mitos e a consciência se formam a partir dos impulsos e escolhas mais íntimas dos homens e mulheres que se encontram (ou se desencontram) em relação com esse lugar. É como se o diretor tivesse a capacidade de perfurar com uma agulha muito fina a torrente do monólogo interior de cada um de seus personagens, drenando um caldo vivo de força e espiritualidade, dignificando, a partir desses pirados e perdidos, toda a experiência humana de embate com a natureza, o mercado, a sanidade, a sobrevivência...
Na contramão dos efeitos excessivos, a montagem não se sobrepõe ao que definiu como principal, a essa fluência do contar, essa espécie de "nostalgia do futuro" que contagia a todos. O autor, porém, assume sua responsabilidade política e estética, está ali e na hora, ora propondo possibilidades aos personagens, ora perguntando e ora respondendo, através da seleção de seus enquadramentos, cores e cortes, o quanto e de que maneira aquilo tudo o toca.
Como em poucas obras desse tipo, nós entendemos por que se faz um filme, o que vale a pena ser filmado de cada um de nós e para que esse tipo de experiência serve. É uma clareza que falta à maioria dos que se dizem cineastas em seus projetos de filmes. É algo sobre o que a televisãozinha reprodutora de fórmulas dramatúrgicas jamais terá coragem de pensar, pelo menos enquanto esse "modelo" de comunicação continuar concentracionário como é.
"Do Outro Lado do Rio", por sua delicada investigação, pelas qualidades rítmicas, pela síntese sonora da trilha de Lívio Tragtemberg e Wilson Sukorski, representa ar fresco contra a burrice em série. Não deixem de ver. É bom para a saúde visual e mental.


DO OUTRO LADO DO RIO - direção: Lucas Bambozzi. Brasil, 2004. Quando: hoje, às 21h, no Cinesesc.


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