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CRÍTICA
Diários revelam Sylvia Plath em suas próprias palavras
RODRIGO GARCIA LOPES
ESPECIAL PARA A FOLHA
Escrever diários é dialogar
com nossa própria consciência. Registrar nossa presença, deixar um "textemunho" de nossa
passagem por este planeta. Ou como escreveu Ana Cristina Cesar:
"Você escreve um diário exatamente porque não tem um confidente [...]. Então você vai escrever
um diário para suprir este locutor
que está te faltando. [...] O impulso básico de escrever é mobilizar
alguém, mas você não sabe direito
quem é esse alguém". Esse parece
ser o caso dos "Os Diários de
Sylvia Plath 1950-1962".
Uma das mais importantes e
mitificadas poetas do século 20,
Sylvia Plath (1932-1963) chega ao
leitor brasileiro em suas próprias
palavras. Ela começou a escrever
diários aos 11 anos e desenvolveria o hábito até o rigoroso inverno
de 1963, quando se suicidou.
A eleição de Plath como mártir
feminista ou vítima da sociedade
da época acabaria desviando o foco mais para seus problemas do
que para seus poemas. Mesmo
tendo morrido cedo e dona de
uma poética peculiar, sua obra está no mesmo nível de realização
de outras grandes poetas americanas do século 20, como Laura
Riding, Marianne Moore, Elizabeth Bishop, Muryel Rukeiser,
Lorine Niedecker e H.D.
Autoconhecimento
"Diários de Sylvia Plath" é importante por revelar Plath como
uma escritora obcecada com sua
arte. Uma mulher frágil, mas intensa, em busca de uma identidade pessoal e poética. "Primeiro,
conhecer a mim mesma, profundamente, e tudo que juntei dos
outros com o tempo e o espaço",
ela escreve em janeiro de 1958.
Essa busca pelo autoconhecimento está na raiz da poesia americana (Emily Dickinson e Walt
Whitman). Os diários vão do seu
tempo de estudante universitária
nos EUA e Inglaterra, passando
por sua experiência como professora e escritora, seu casamento
turbulento com o poeta inglês
Ted Hughes (1930-1998) e alguns
trechos de diários de 1960 a 1962.
A edição é fiel a estilo e características dos originais. Datilografados em folhas soltas ou manuscritos em livros de capa dura, do primeiro ao último registro vemos
uma mente intensa tentando mobilizar um interlocutor virtual e
dar sentido à vida. Na falta de um
interlocutor, e precisando romper
o silêncio e a solidão criativa, o
diário passa a ser vital: "É impossível "capturar a vida" se a gente
não mantém diários", sublinha a
poeta em 1957. Eles passam a ser
essenciais também para sua própria evolução poética.
O mais surpreendente na leitura
dos diários é perceber um trabalho de linguagem diferente mas
não menos consistente do que vemos em sua poesia. Plath revela
seu prazer pela escrita: "Amo este
caderno, a ponta preta da caneta a
deslizar sobre o papel liso".
O resultado vai de trechos exuberantes de prosa poética a esboços para novelas ou poemas futuros que ela não teve tempo de realizar. A não-obrigação de escrever
para publicar fez com que a autora se soltasse nos diários, fosse
menos "perfeita" que em seus
poemas, experimentasse mais em
termos de linguagem.
Eles nos permitem espiar não só
seus pensamentos mais íntimos,
sua luta para se encaixar nos papéis de "boa esposa e mãe" nos
conservadores anos da Guerra
Fria e do "american way of life",
como também verificar o que ela
pensava sobre a guerra, a situação
da mulher e a literatura contemporânea. São, portanto, um documento de época: "Só o que os
anos 40 e 50 superficiais nos deram foram empresários políticos
cheios de gim e poesia ruim", ela
desabafa.
Mistura de gêneros
Verdadeiro laboratório textual,
os diários borram as fronteiras
entre gêneros: no livro se misturam fragmentos de prosa, poemas, meditações filosóficas, sonhos, descrições, estruturas e
idéias para romances (como "A
Redoma de Vidro"), desenhos e
até notas para um filme experimental. A forma mais comum é o
monólogo dramático ou solilóquio, em que a mente pensando
se torna o impulso da escrita.
Ler os diários é também ter
acesso às leituras e interesses de
Plath (Robert Lowell, J.D. Salinger, Dostoiévksi, Joyce, Pound,
Virginia Woolf), além de sua intensa vida interior. Portanto são
de leitura obrigatória para quem
quer compreender melhor seu
processo criativo-emocional.
A ausência problemática da edição: os dois diários de capa dura
referentes aos últimos três anos
de vida, que Hughes alegou ter
"destruído" para preservar a memória dos dois filhos do casal.
O incrível é que, na introdução a
"Johnny Panic and the Bible of
Dreams" (coletânea de prosas da
autora "liberadas" por ele em
1976), o próprio "editor" afirmava
a importância-chave dos diários
para o processo de composição de
"Ariel". Com o sumiço desses diários, ficamos sem os registros do
período crucial de sua crise interna (após a traição de Hughes no
começo de 62 e o fim do casamento). Infelizmente, ficamos também sem acesso ao período que
coincide com sua maturação poética e os exuberantes poemas de
"Ariel", livro que ela deixou organizado na manhã em que morreu.
Apesar de Plath não estar totalmente aí, "Diários de Sylvia
Plath", na boa tradução de Celso
Nogueira, atesta a qualidade de
sua escrita e expande nossa compreensão de seu processo criativo.
É uma prova de que ela, mesmo
numa prática "doméstica" e privada, era uma artista da palavra
em período integral, mais que
meramente a poeta suicidada pela
sociedade.
Poeta hoje totalmente canonizada, depois de uma dúzia de biografias e um filme ("Sylvia", que
estréia na próxima sexta), sua vida foi esmiuçada em todos os detalhes e ângulos possíveis, mas
sem que se chegasse a um denominador comum sobre quem foi
Sylvia Plath. Com os diários, escritos por alguém que quis viver
com a intensidade da arte, pelo
menos temos sua própria versão.
Rodrigo Garcia Lopes é autor de
"Sylvia Plath: Poemas" (Iluminuras), com
Maurício Arruda Mendonça, e "Polivox"
(Azougue)
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