São Paulo, sábado, 03 de abril de 2004

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CRÍTICA

Diários revelam Sylvia Plath em suas próprias palavras

RODRIGO GARCIA LOPES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Escrever diários é dialogar com nossa própria consciência. Registrar nossa presença, deixar um "textemunho" de nossa passagem por este planeta. Ou como escreveu Ana Cristina Cesar: "Você escreve um diário exatamente porque não tem um confidente [...]. Então você vai escrever um diário para suprir este locutor que está te faltando. [...] O impulso básico de escrever é mobilizar alguém, mas você não sabe direito quem é esse alguém". Esse parece ser o caso dos "Os Diários de Sylvia Plath 1950-1962".
Uma das mais importantes e mitificadas poetas do século 20, Sylvia Plath (1932-1963) chega ao leitor brasileiro em suas próprias palavras. Ela começou a escrever diários aos 11 anos e desenvolveria o hábito até o rigoroso inverno de 1963, quando se suicidou.
A eleição de Plath como mártir feminista ou vítima da sociedade da época acabaria desviando o foco mais para seus problemas do que para seus poemas. Mesmo tendo morrido cedo e dona de uma poética peculiar, sua obra está no mesmo nível de realização de outras grandes poetas americanas do século 20, como Laura Riding, Marianne Moore, Elizabeth Bishop, Muryel Rukeiser, Lorine Niedecker e H.D.

Autoconhecimento
"Diários de Sylvia Plath" é importante por revelar Plath como uma escritora obcecada com sua arte. Uma mulher frágil, mas intensa, em busca de uma identidade pessoal e poética. "Primeiro, conhecer a mim mesma, profundamente, e tudo que juntei dos outros com o tempo e o espaço", ela escreve em janeiro de 1958.
Essa busca pelo autoconhecimento está na raiz da poesia americana (Emily Dickinson e Walt Whitman). Os diários vão do seu tempo de estudante universitária nos EUA e Inglaterra, passando por sua experiência como professora e escritora, seu casamento turbulento com o poeta inglês Ted Hughes (1930-1998) e alguns trechos de diários de 1960 a 1962.
A edição é fiel a estilo e características dos originais. Datilografados em folhas soltas ou manuscritos em livros de capa dura, do primeiro ao último registro vemos uma mente intensa tentando mobilizar um interlocutor virtual e dar sentido à vida. Na falta de um interlocutor, e precisando romper o silêncio e a solidão criativa, o diário passa a ser vital: "É impossível "capturar a vida" se a gente não mantém diários", sublinha a poeta em 1957. Eles passam a ser essenciais também para sua própria evolução poética.
O mais surpreendente na leitura dos diários é perceber um trabalho de linguagem diferente mas não menos consistente do que vemos em sua poesia. Plath revela seu prazer pela escrita: "Amo este caderno, a ponta preta da caneta a deslizar sobre o papel liso".
O resultado vai de trechos exuberantes de prosa poética a esboços para novelas ou poemas futuros que ela não teve tempo de realizar. A não-obrigação de escrever para publicar fez com que a autora se soltasse nos diários, fosse menos "perfeita" que em seus poemas, experimentasse mais em termos de linguagem.
Eles nos permitem espiar não só seus pensamentos mais íntimos, sua luta para se encaixar nos papéis de "boa esposa e mãe" nos conservadores anos da Guerra Fria e do "american way of life", como também verificar o que ela pensava sobre a guerra, a situação da mulher e a literatura contemporânea. São, portanto, um documento de época: "Só o que os anos 40 e 50 superficiais nos deram foram empresários políticos cheios de gim e poesia ruim", ela desabafa.

Mistura de gêneros
Verdadeiro laboratório textual, os diários borram as fronteiras entre gêneros: no livro se misturam fragmentos de prosa, poemas, meditações filosóficas, sonhos, descrições, estruturas e idéias para romances (como "A Redoma de Vidro"), desenhos e até notas para um filme experimental. A forma mais comum é o monólogo dramático ou solilóquio, em que a mente pensando se torna o impulso da escrita.
Ler os diários é também ter acesso às leituras e interesses de Plath (Robert Lowell, J.D. Salinger, Dostoiévksi, Joyce, Pound, Virginia Woolf), além de sua intensa vida interior. Portanto são de leitura obrigatória para quem quer compreender melhor seu processo criativo-emocional.
A ausência problemática da edição: os dois diários de capa dura referentes aos últimos três anos de vida, que Hughes alegou ter "destruído" para preservar a memória dos dois filhos do casal.
O incrível é que, na introdução a "Johnny Panic and the Bible of Dreams" (coletânea de prosas da autora "liberadas" por ele em 1976), o próprio "editor" afirmava a importância-chave dos diários para o processo de composição de "Ariel". Com o sumiço desses diários, ficamos sem os registros do período crucial de sua crise interna (após a traição de Hughes no começo de 62 e o fim do casamento). Infelizmente, ficamos também sem acesso ao período que coincide com sua maturação poética e os exuberantes poemas de "Ariel", livro que ela deixou organizado na manhã em que morreu.
Apesar de Plath não estar totalmente aí, "Diários de Sylvia Plath", na boa tradução de Celso Nogueira, atesta a qualidade de sua escrita e expande nossa compreensão de seu processo criativo.
É uma prova de que ela, mesmo numa prática "doméstica" e privada, era uma artista da palavra em período integral, mais que meramente a poeta suicidada pela sociedade.
Poeta hoje totalmente canonizada, depois de uma dúzia de biografias e um filme ("Sylvia", que estréia na próxima sexta), sua vida foi esmiuçada em todos os detalhes e ângulos possíveis, mas sem que se chegasse a um denominador comum sobre quem foi Sylvia Plath. Com os diários, escritos por alguém que quis viver com a intensidade da arte, pelo menos temos sua própria versão.


Rodrigo Garcia Lopes é autor de "Sylvia Plath: Poemas" (Iluminuras), com Maurício Arruda Mendonça, e "Polivox" (Azougue)

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