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CECILIA GIANNETTI
Insistência
Contrariando expectativas, entre os muitos mortos e feridos e dilacerados, ainda há vida no Rio de Janeiro
VISITO SÃO Paulo e os amigos
de lá querem saber: mas, e o
Rio? Tá deste jeito mesmo
que a gente vê na imprensa? Pela
freqüência com que ouço a pergunta
quando cruzo a Ipiranga com a avenida São João -e outras de menor
fama musical-, respondo por aqui
que sim, é assim, sim.
Carioca amarra a cara de frente
para o jornal pela manhã, trinca os
dentes na torrada lendo a ficção
científica-policial do cotidiano. Mas,
aí é botar os pés na rua e o sol grita lá
da praia, avistada entre prédios
-nesga de areia que ferve e céu que
cola na água da mesma cor-, cobiçada pelos olhos compridos de
quem passa de ônibus a caminho do
trabalho.
É botar a cara na rua pra ver as calçadas do centro até a orla apinhadas
de mesinhas e cerveja e gente, GENTE, contrariando todas as expectativas: entre os muitos mortos e feridos
e dilacerados, ainda há vida no Rio
de Janeiro. E bastante disposição
para vivê-la.
É o "amor fati" nietzschiano, noção filosófica que define a plena disposição para a vida, para o que der e
vier. Ou apenas enchem a cara nessas mesinhas de bares (sabedoria
trágica dionisíaca) até que se embaralhe a vista de tal modo que as letras do jornal tropecem umas por cima das outras e nada, nenhuma
manchete consiga demovê-los da
idéia de estar fora de casa sem medo
algum.
De porre em porre, as centenas
que escorrem dos elevadores dos escritórios aos bares no fim do expediente trocam um ataque de pânico
pelo fígado atacado. Os que vão à
praia, sem um escritório no qual fazer as vezes de boy, gerente ou chefe,
logram substituir a paranóia pelo
bronzeado.
E não há dia de sol em que os que
passam de ônibus por trás dos prédios não enxerguem, entre os vãos
de concreto, a orla cheia de gente
muito viva.
Mercado de trabalho morno, sol a
pino. Alguns têm inveja dos desempregados que se deitam sobre cangas coloridas em horário comercial.
Melhor não vê-los, viajar lendo o
jornal. Na manchete com que procuram desviar os olhos da beleza
obscena da cidade, vêem a mãe que
sobe o morro do Macaco para buscar
o que sobrou da filha seqüestrada
por traficantes: um corpo sem cabeça e sem um braço. Morda a sua torrada, o seu pão de queijo do café da
manhã do hotel; bem-vindo ao Rio.
No asfalto, em área "nobre" de
Ipanema -na esquina de um restaurante que, de tão nobilíssimo,
tem a cara-de-pau de cobrar R$ 6
por uma long neck-, o grito de um
turista que toma uma paulada na cabeça e tem seus pertences roubados
apavora os comensais. O turista entra no restaurante e a hostess lhe
fornece um gelinho para a testa ensangüentada. "Shit happens."
No Rio, "shit happens" até demais.
A freqüência com que "happens" e a
naturalidade com que passamos a
encarar os casos que terminam impunes é o que apavora. Apavora somente até que o celular toque -o
novo, que substitui aquele roubado
na semana passada- e alguém chame para um chope. Amor fati, insiste-se em viver.
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