São Paulo, terça-feira, 03 de abril de 2007

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CECILIA GIANNETTI

Insistência

Contrariando expectativas, entre os muitos mortos e feridos e dilacerados, ainda há vida no Rio de Janeiro

VISITO SÃO Paulo e os amigos de lá querem saber: mas, e o Rio? Tá deste jeito mesmo que a gente vê na imprensa? Pela freqüência com que ouço a pergunta quando cruzo a Ipiranga com a avenida São João -e outras de menor fama musical-, respondo por aqui que sim, é assim, sim.
Carioca amarra a cara de frente para o jornal pela manhã, trinca os dentes na torrada lendo a ficção científica-policial do cotidiano. Mas, aí é botar os pés na rua e o sol grita lá da praia, avistada entre prédios -nesga de areia que ferve e céu que cola na água da mesma cor-, cobiçada pelos olhos compridos de quem passa de ônibus a caminho do trabalho.
É botar a cara na rua pra ver as calçadas do centro até a orla apinhadas de mesinhas e cerveja e gente, GENTE, contrariando todas as expectativas: entre os muitos mortos e feridos e dilacerados, ainda há vida no Rio de Janeiro. E bastante disposição para vivê-la.
É o "amor fati" nietzschiano, noção filosófica que define a plena disposição para a vida, para o que der e vier. Ou apenas enchem a cara nessas mesinhas de bares (sabedoria trágica dionisíaca) até que se embaralhe a vista de tal modo que as letras do jornal tropecem umas por cima das outras e nada, nenhuma manchete consiga demovê-los da idéia de estar fora de casa sem medo algum.
De porre em porre, as centenas que escorrem dos elevadores dos escritórios aos bares no fim do expediente trocam um ataque de pânico pelo fígado atacado. Os que vão à praia, sem um escritório no qual fazer as vezes de boy, gerente ou chefe, logram substituir a paranóia pelo bronzeado.
E não há dia de sol em que os que passam de ônibus por trás dos prédios não enxerguem, entre os vãos de concreto, a orla cheia de gente muito viva.
Mercado de trabalho morno, sol a pino. Alguns têm inveja dos desempregados que se deitam sobre cangas coloridas em horário comercial. Melhor não vê-los, viajar lendo o jornal. Na manchete com que procuram desviar os olhos da beleza obscena da cidade, vêem a mãe que sobe o morro do Macaco para buscar o que sobrou da filha seqüestrada por traficantes: um corpo sem cabeça e sem um braço. Morda a sua torrada, o seu pão de queijo do café da manhã do hotel; bem-vindo ao Rio.
No asfalto, em área "nobre" de Ipanema -na esquina de um restaurante que, de tão nobilíssimo, tem a cara-de-pau de cobrar R$ 6 por uma long neck-, o grito de um turista que toma uma paulada na cabeça e tem seus pertences roubados apavora os comensais. O turista entra no restaurante e a hostess lhe fornece um gelinho para a testa ensangüentada. "Shit happens."
No Rio, "shit happens" até demais. A freqüência com que "happens" e a naturalidade com que passamos a encarar os casos que terminam impunes é o que apavora. Apavora somente até que o celular toque -o novo, que substitui aquele roubado na semana passada- e alguém chame para um chope. Amor fati, insiste-se em viver.


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