São Paulo, sexta-feira, 03 de maio de 2002

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BANDA MANTIQUEIRA/CRÍTICA

Yamandú e Paulo Moura no céu

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Yamandú roubou a noite. E olha que era noite de Banda Mantiqueira e Paulo Moura. Mas o violonista gaúcho entrou no palco do Bourbon Street Jazz Club, quarta passada, como Pelé entrava na Vila Belmiro, ou Falcão no Beira-Rio: cercado de um timaço de talentos, ele era claramente o centro do jogo, desde o momento em que pisou em cena. A bola da música rolou para o violão de sete cordas, que atraía todas as idéias para si, transformando tudo em novidade.
Assim como o "ú" acentuado do nome, também os arrojos dele têm sua dose de absurdo. O que pode ser uma alegria: glissandos, pizzicatos, quebradas de rock e blues, rasgueados, tremolandos, um arsenal completo de fogos de artifício, mobilizado com humor esfuziante. Seria bom, sem dúvida, escutar Yamandú tocar alguma coisa, alguma vez, sem a compulsão de tropicalizar o espírito de Paganini e Liszt. Mas compreende-se que não seja para agora.
Sua facilidade chega a ser quase uma afronta; e os violonistas na platéia devem ter passado muitas vezes do maravilhamento ao masoquismo, assistindo a essas proezas inteiramente fora da possibilidade geral. Cabe lembrar que o monstro mal completou 22 anos; e que a simplicidade virá quando for hora. Por enquanto, só os puristas e os intimistas ficam reclamando do maior violonista brasileiro depois de Baden Powell (1932-90) e Raphael Rabelo (1962-95). Yamandú forma com eles, desde já e para sempre, uma trindade santa do violão.

Um gênio modesto
E a Banda Mantiqueira? Dirigida pelo gênio modesto e sereno de Proveta, continua fazendo a festa no céu. (O céu, para todos os efeitos, é onde eles estiverem tocando. Até o Bourbon Street pode ser um paraíso: o ambiente de bingo some, por mágica, com o primeiro acorde dos metais.) Se Yamandú é nosso Liszt, Proveta é nosso Mozart, infalível na escolha de cada nota e cada acorde, como se fosse a única forma de tocar. Para ele, é.
E um músico assim faz todo mundo tocar bonito ao redor. Desde "Prêt-à-Porter de Tafetá" (João Bosco) até os pot-pourris de Luiz Gonzaga ("Qui nem Jiló", "Pau-de-Arara" e outras) e de Cartola e Nelson Cavaquinho ("As Rosas Não Falam", "Folhas Secas"), passando por um arranjo deslumbrante de "Catavento e Girassol" (Guinga), a Banda Mantiqueira confere a tudo o que toca uma dignidade diferente.
Não são apenas os solos de François no trombone, Odésio Jericó no trompete, Fred Prince no tamborim, Samuel e Vinícius nos sax ou Erson José Alves na guitarra -este último também um arranjador de primeira-, mas algo que é comum a todos e maior do que eles. Uma grandiosidade sem pompa, que faz dessa música uma forma de habitar humanamente o país.
É preciso reservar um parágrafo só para falar das segundas menores nas flautas, em "Folhas Secas".
Outro para a subidinha-e-descidinha clássica -quinta, quinta aumentada, sexta, ida e volta-, que ganha com a Mantiqueira sua dimensão canônica. Faz parte das vozes internas, uma das riquezas mais preciosas da banda. Vamos deixar bem claro: detalhes assim não significam menos do que a fixação do nosso cânone musical, num sentido estritamente técnico e também mais do que isso.
Faz dez anos que a Banda Mantiqueira é uma de nossas reservas de inteligência musical; e deveria ser preservada e festejada como tal. Uma reserva de ar: quer dizer, de espírito.
Tanto mais bonito, então, ver seu "padrinho" Paulo Moura subir ao palco, na madureza bem curtida de sete décadas de música, para tocar "Carinhoso" (Pixinguinha e João de Barro) com eles. Os cabelos grisalhos, o terno discreto, a gravata encarnada, o lenço no bolso do paletó: chega um tempo em que um homem conquista assim para si a imagem de si. Musicalmente também. Não está mais tocando para a torcida. Abstraído, com os olhos em ponto morto, ele toca para a música, para os colegas, para si mesmo, para Deus. Para nós, incidentalmente, também.
Tocou com a banda, depois só com Proveta e Yamandú (o "Chorinho para Você", de Severino Araújo, da Orquestra Tabajara, uma das mães musicais da Mantiqueira). Depois só com o violão, depois sozinho. E vice-versa. Foi lindo, então, ver Yamandú estourando os compassos, esticando a métrica como se fosse de borracha e avançando por terras desconhecidas do samba (e de "Sampa", que ele transforma numa capital multicultural do samba-bossa-rock-choro-funk).
Sugestões de alegoria, encontro de gerações etc. não serão aceitas numa resenha que preza seu senso da língua. Mas não era alegoria, era verdade.
Sugestões de decupagem, para o hipotético documentarista: Paulo Moura olhando para Yamandú, olhando para o braço do violão. Proveta olhando para Paulo Moura, de olhos fechados. Erson olhando para Yamandú e dando uma risada. Fred Prince, de tamborim na mão, se virando para olhar para Odésio, que ajusta os óculos depois de solar. Todo mundo olhando para Yamandú. Paulo Moura olhando para o chão. Proveta olhando para a partitura, com uma expressão de felicidade.


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