|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
BANDA MANTIQUEIRA/CRÍTICA
Yamandú e Paulo Moura no céu
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Yamandú roubou a noite. E
olha que era noite de Banda
Mantiqueira e Paulo Moura. Mas
o violonista gaúcho entrou no
palco do Bourbon Street Jazz
Club, quarta passada, como Pelé
entrava na Vila Belmiro, ou Falcão no Beira-Rio: cercado de um
timaço de talentos, ele era claramente o centro do jogo, desde o
momento em que pisou em cena.
A bola da música rolou para o violão de sete cordas, que atraía todas as idéias para si, transformando tudo em novidade.
Assim como o "ú" acentuado
do nome, também os arrojos dele
têm sua dose de absurdo. O que
pode ser uma alegria: glissandos,
pizzicatos, quebradas de rock e
blues, rasgueados, tremolandos,
um arsenal completo de fogos de
artifício, mobilizado com humor
esfuziante. Seria bom, sem dúvida, escutar Yamandú tocar alguma coisa, alguma vez, sem a compulsão de tropicalizar o espírito
de Paganini e Liszt. Mas compreende-se que não seja para agora.
Sua facilidade chega a ser quase
uma afronta; e os violonistas na
platéia devem ter passado muitas
vezes do maravilhamento ao masoquismo, assistindo a essas proezas inteiramente fora da possibilidade geral. Cabe lembrar que o
monstro mal completou 22 anos;
e que a simplicidade virá quando
for hora. Por enquanto, só os puristas e os intimistas ficam reclamando do maior violonista brasileiro depois de Baden Powell
(1932-90) e Raphael Rabelo (1962-95). Yamandú forma com eles,
desde já e para sempre, uma trindade santa do violão.
Um gênio modesto
E a Banda Mantiqueira? Dirigida pelo gênio modesto e sereno de
Proveta, continua fazendo a festa
no céu. (O céu, para todos os efeitos, é onde eles estiverem tocando. Até o Bourbon Street pode ser
um paraíso: o ambiente de bingo
some, por mágica, com o primeiro acorde dos metais.) Se Yamandú é nosso Liszt, Proveta é nosso
Mozart, infalível na escolha de cada nota e cada acorde, como se
fosse a única forma de tocar. Para
ele, é.
E um músico assim faz todo
mundo tocar bonito ao redor.
Desde "Prêt-à-Porter de Tafetá"
(João Bosco) até os pot-pourris de
Luiz Gonzaga ("Qui nem Jiló",
"Pau-de-Arara" e outras) e de
Cartola e Nelson Cavaquinho
("As Rosas Não Falam", "Folhas
Secas"), passando por um arranjo
deslumbrante de "Catavento e Girassol" (Guinga), a Banda Mantiqueira confere a tudo o que toca
uma dignidade diferente.
Não são apenas os solos de
François no trombone, Odésio Jericó no trompete, Fred Prince no
tamborim, Samuel e Vinícius nos
sax ou Erson José Alves na guitarra -este último também um arranjador de primeira-, mas algo
que é comum a todos e maior do
que eles. Uma grandiosidade sem
pompa, que faz dessa música uma
forma de habitar humanamente o
país.
É preciso reservar um parágrafo
só para falar das segundas menores nas flautas, em "Folhas Secas".
Outro para a subidinha-e-descidinha clássica -quinta, quinta
aumentada, sexta, ida e volta-,
que ganha com a Mantiqueira sua
dimensão canônica. Faz parte das
vozes internas, uma das riquezas
mais preciosas da banda. Vamos
deixar bem claro: detalhes assim
não significam menos do que a fixação do nosso cânone musical,
num sentido estritamente técnico
e também mais do que isso.
Faz dez anos que a Banda Mantiqueira é uma de nossas reservas
de inteligência musical; e deveria
ser preservada e festejada como
tal. Uma reserva de ar: quer dizer,
de espírito.
Tanto mais bonito, então, ver
seu "padrinho" Paulo Moura subir ao palco, na madureza bem
curtida de sete décadas de música,
para tocar "Carinhoso" (Pixinguinha e João de Barro) com eles.
Os cabelos grisalhos, o terno discreto, a gravata encarnada, o lenço no bolso do paletó: chega um
tempo em que um homem conquista assim para si a imagem de
si. Musicalmente também. Não
está mais tocando para a torcida.
Abstraído, com os olhos em ponto morto, ele toca para a música,
para os colegas, para si mesmo,
para Deus. Para nós, incidentalmente, também.
Tocou com a banda, depois só
com Proveta e Yamandú (o "Chorinho para Você", de Severino
Araújo, da Orquestra Tabajara,
uma das mães musicais da Mantiqueira). Depois só com o violão,
depois sozinho. E vice-versa. Foi
lindo, então, ver Yamandú estourando os compassos, esticando a
métrica como se fosse de borracha e avançando por terras desconhecidas do samba (e de "Sampa", que ele transforma numa capital multicultural do samba-bossa-rock-choro-funk).
Sugestões de alegoria, encontro
de gerações etc. não serão aceitas
numa resenha que preza seu senso da língua. Mas não era alegoria,
era verdade.
Sugestões de decupagem, para o
hipotético documentarista: Paulo
Moura olhando para Yamandú,
olhando para o braço do violão.
Proveta olhando para Paulo Moura, de olhos fechados. Erson
olhando para Yamandú e dando
uma risada. Fred Prince, de tamborim na mão, se virando para
olhar para Odésio, que ajusta os
óculos depois de solar. Todo
mundo olhando para Yamandú.
Paulo Moura olhando para o
chão. Proveta olhando para a partitura, com uma expressão de felicidade.
Avaliação:
Texto Anterior: "Não vamos pedir vídeo", diz SBT Próximo Texto: Música/Lançamentos - The Langley Schools Music: Coral de crianças reinventa os Beatles e David Bowie Índice
|