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Crítica/"Lisboa - O que o Turista Deve Ver"
Em livro inédito, Fernando Pessoa expõe Lisboa de "excessos"
JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA
Portugal é um país com
vocação para o fado.
Inevitável, dirão alguns:
como é possível que um pequeno país europeu, dono do mundo no século 15, tenha sobrevivido à perda do Império com a
cabeça limpa?
Resposta evidente: não sobreviveu. O Brasil, verdade seja
dita, ainda animou as hostes a
partir do século 16. Mas, quando Napoleão resolveu marchar
para a Península Ibérica, o agudo sentido de decadência nunca mais abandonou os nativos.
Em 1807, o rei fazia as malas e
fugia para o Brasil; o Brasil,
poucos anos depois, declarava a
independência; e as guerras civis em solo luso fizeram o resto.
Ser português era sofrer: era
lembrar a glória perdida e suspirar de tédio ou náusea. De
Eça de Queirós a Oliveira Martins, não houve intelectual com
pretensões que não tenha escrito sobre o "atraso" nacional.
Portugal era aquele sítio que
dava vontade de morrer. Ou,
então, dava vontade de matar.
Dito e feito: em 1908, o rei d.
Carlos era assassinado a tiro.
Veio a República. E, com ela,
veio um estado de violência revolucionária que durou até
1926, altura em que os militares
acabaram com a festa e prepararam o caminho para Salazar.
O livro de Fernando Pessoa,
"Lisboa - O que o Turista Deve
Ver", um inédito escrito em
1925 (em inglês), não pode ser
entendido sem a História. Não
pode ser entendido sem o forte
sentido de "descategorização
civilizacional" que não poderia
deixar de entristecer um "patriota cosmopolita" como Pessoa. Será esse sentimento que o
levará a exaltar Lisboa para
consumo estrangeiro.
A Lisboa que o leitor tem nas
páginas do livro é sempre excesso: os funcionários são
"competentes", "poliglotas",
"afáveis"; todos os edifícios são
"belos", ou "obras-primas", ou
exemplares "sem paralelo na
Europa".
Contornos
Confrontado com tais descrições, a primeira atitude é questionar se uma cidade assim tão
perfeita existiu algum dia na
Terra. Uma coisa é certa: para
quem vive hoje em Lisboa, a cidade apresentada no livro ganha contornos fantasmagóricos. Sim, alguns elementos
continuam no sítio: a belíssima
Praça do Comércio continua a
maravilhar os turistas e a albergar os serviços públicos; e, claro, os Jerónimos serão sempre
os Jerónimos.
Mas, em contrapartida, onde
está essa baixa pombalina que,
em 1925, apresentava lojas "tão
luxuosas como as suas congêneres européias"? Não está
mais. E também não estão os
hotéis do Rossio, que fugiram
para a parte alta da cidade. Ou
os cinemas da avenida da Liberdade, que hoje estão nos
shoppings da periferia.
E se Pessoa, em 1925, se indignava com os lisboetas que
não visitavam o frondoso Parque Eduardo VII, não sei o que
diria ele hoje: "freqüentar o
Parque Eduardo VII" é uma
forma elegante para designar o
negócio da prostituição na capital portuguesa.
Uma passagem, porém, despertou-me um sorriso irônico:
ao passar pelo Chiado, em 1925,
Pessoa prestava homenagem à
estátua do poeta António do
Espírito Santo. Quem diria que,
em 2008, o poeta do Chiado seria outro. Neste caso, o próprio
Fernando Pessoa, transformado em estátua e sentado à mesa
de um café.
LISBOA - O QUE O TURISTA DEVE VER
Autor: Fernando Pessoa
Tradução: Maria Aurélia Santos
Gomes
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 39 (192 págs.)
Avaliação: regular
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