São Paulo, segunda, 3 de maio de 1999

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VÍDEO - LANÇAMENTOS
Sviatoslav Richter


Sai nos Estados Unidos documentário do pianista russo que, para muitos, foi o maior deste século


ARTHUR NESTROVSKI
da Equipe de Articulistas

É uma tomada estranha: Richter visto de cima, sentado ao piano num ambiente caseiro, contra um tapete de padrões geométricos. Por alguns segundos, ele não faz nenhum gesto. Subitamente joga um lenço no tampo do instrumento e ataca o "Estudo Op. 10/4", de Chopin, com uma vitalidade tão enorme e uma certeza tão cega que parece mais um caso de possessão.
Esse gesto de entrega súbita e total à música é característico e se repete algumas vezes no filme "Richter The Enigma", lançado há pouco nos Estados Unidos: um golpe vindo do nada na "Balada nē 4", de Chopin, um mergulho sem preparação numa "Fantasia e Fuga", de Bach, inúmeros pequenos lances no prelúdio "Ce Qu'a Vu le Vent d'Ouest", de Debussy. "Um elemento de surpresa é essencial", comenta Richter já idoso, numa das entrevistas que servem de guia para o documentário.
Mas o que há de teatro nessas surpresas logo se converte em outra coisa, algo de mais protegido e mais forte, que se alegoriza no lábio inferior cerrado sobre o de cima ou no olhar de concentração e transcendência desse pianista entregue aos dedos: converte-se em música ou, mais precisamente, na música de Sviatoslav Richter.
Morto em 1997, aos 82 anos, Richter foi para muitos o maior pianista do século. Preso ao bloco comunista e transformado em lenda no Ocidente até sua primeira turnê americana, em 1960, conquistou logo depois uma estatura genuína e universal. Sua fama permaneceu justificada não só pelos concertos, que ele jamais se cansou de tocar, mas também pelas dezenas de gravações, abarcando fatias generosas de um repertório que se pode resumir numa palavra: tudo.
A "Coleção Richter" da gravadora Philips (sintetizada em "The Essential Richter", cinco CDs, bem como no álbum triplo com a trilha do filme) serve de testamento "autorizado" da genialidade e da audácia desse pianista que desautorizava qualquer tipo de formalismo.
Richter não se adaptou de todo à espécie: visitou o planeta nas asas da música, sem paciência para o que não fosse autêntico e intenso. Sua passagem ganha outro monumento, agora, nesse vídeo extraordinário de Bruno Monsaingeon.
Incluído numa série que já rendeu filmes sobre o violinista David Oistrakh e o barítono Dietrich Fischer-Dieskau, "Richter the Enigma" realiza, melhor do que qualquer outro -incluindo até o antológico "Gould Plays Bach", do mesmo diretor-, a aspiração quase impossível de traduzir ou complementar a música em imagens.
Para quem, como Richter, não gostava de câmeras, a quantidade de tomadas pessoais é surpreendente: festas em casa, passeios na floresta, ensaios numa cabana, viagens de carro, de trem, de barco. Encontros com outros músicos (Rostropovich, Oleg Kagan, Benjamin Britten). Encantamentos e alegrias com a cantora Nina Dorliac, que ele conheceu na década de 40 e de quem nunca mais se separou. Concertos, recitais, ensaios; sozinho, com grupos de câmara, com orquestras; em grandes salas, num quarto ou, como ele mais gostava, num palco praticamente escuro, com uma única lâmpada iluminando a partitura.
Monsaingeon vai acompanhando, com essas e outras cenas, as memórias do velho Richter, falando livremente ou lendo em voz alta trechos de seus diários recém-publicados numa edição francesa, "Sviatoslav Richter, Écrits, Conversations" (Actes Sud).
Em contraponto com isso, o filme reúne um número impressionante de imagens de arquivo: desde o enterro de Stálin (no qual Richter foi obrigado a tocar) e da destruição, por ordem do Partido, das torres das igrejas em Odessa (cidade onde seu pai, descendente de alemães, foi assassinado) até o dia-a-dia na Rússia comunista, ou epifanias domésticas dos compositores Shostakovich e Prokofiev, ou depoimentos de outros pianistas como Artur Rubinstein ("Richter me fez chorar... ele me fez escutar um instrumento que eu nunca tinha ouvido") e Glenn Gould ("Richter foi o exemplo supremo, no nosso tempo, de um músico capaz de nos dar a ilusão de vínculos diretos entre a interpretação e a música").
"Richter" e "música" se confundem muito nessas histórias, o que é apenas um dos ensinamentos do filme. Pois o sentido de tantas lembranças, tantos episódios, tantas imagens, tantas pessoas, tantas perdas, tantos absurdos, tanto sofrimento e até uma parcela de amor e alegria parecem convergir para o tanto de música que as mãos de Richter vão fazendo soar ao longo dessas duas horas (ou ao longo de seus 82 anos).
˛ Conotações proustianas
Mas o inverso também não é verdade? O sentido da música não se materializa na presença fugidia desses pontos de luz, expressões de um rosto, dedos em movimento, um corpo meio desengonçado e "bytes" de som, num murmúrio, numa voz, num tom da fala?
O significado intensamente pessoal da música como arte do tempo também ganha conotações proustianas na mera alternância de imagens do pianista e de sua mulher, recolhidas em décadas diversas. O efeito fica entre a melancolia e a sabedoria, para além da devastação. Um sentido intensamente pessoal do tempo como arte da música era, a propósito, outra marca de Richter.
Seu virtuosismo era mais da imaginação do que dos timbres e mais dos timbres do que das velocidades. E a imaginação, no caso, é uma disciplina temporal, uma ordem humana de acelerações e retardos, que vai ganhando corpo nas linhas e nos acordes da música.
Golpes súbitos e vertigens de rapidez estão num extremo; notas isoladas (em Schubert, por exemplo), melodias suspensas (Schumann), veladuras e afastamentos do som (de Beethoven a Rachmaninov) estão no outro. Seu compositor predileto -que surpresa!- era Haydn, em que tudo se equilibra.
˛ Moscou-Tóquio
Três episódios e uma imagem sintetizam as lições do pianista. Já com mais de 70 anos, Richter partiu em viagem de carro, de Moscou a Tóquio. No caminho, foi parando e tocando em cada cidadezinha, cada vilarejo. Levou seis meses nesse percurso. Detestava planejar a própria vida, quanto mais concertos nas grandes salas, com anos de antecedência.
Preferia o interior da Sibéria ou a espontaneidade de um recital de improviso em Vladivostok. E para ele qualquer piano servia: seu gosto pela música era maior do que a paixão pelo piano, que ele modestamente relegava ao papel de um "instrumento".
Além de planos, Richter detestava duas outras coisas: "As análises e o poder". Foi por isso que nunca se tornou regente, explica numa entrevista. Sua aversão pela vaidade dos músicos fica manifesta não só nos comentários desabonadores de colegas como o maestro Karajan ou o jovem pianista Andrei Gavrilov, mas também na impiedade de suas censuras aos próprios concertos e gravações.
"Qual o segredo de Mozart?", pergunta a si mesmo, nos diários. Lê a pergunta para a câmera, ergue os olhos e não tem o que dizer. Nesse cenário tão simples, uma mesa e uma cadeira de madeira, uma parede caiada, a pergunta ganha a mesma eloquência triste da sobriedade do rosto do pianista. "Ainda não achei a chave para Mozart", comenta noutro ponto.
Uma última cena dá ao filme outra tonalidade, que, em retrospecto, desinterpreta o que passou. "Acho tudo muito perturbador", diz Richter, num tom vacilante. "Não estou só falando de música, mas da vida em geral." E conclui, mais para si mesmo do que para nós: "Não gosto de mim". E cobre o rosto com as mãos, abaixa a cabeça. É um comentário inesperado e desesperançado, mas que confere, quem sabe, outra dignidade, mais alta ainda, ao enigma de Sviatoslav Richter.
˛


Avaliação:


Filme: Richter the Enigma Produção: EUA, 1998, 160 min Direção: Bruno Monsaingeon Lançamento: NVC Arts/Warner Quanto: US$ 29,97 Onde encomendar: www.amazon.com



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