São Paulo, segunda, 3 de maio de 1999

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FERNANDO GABEIRA
Programa seria tratar pobres como ricos

Uma história cheia de som e fúria, significando nada. Temo estar vivendo cenas de Shakespeare, no Brasil. Criaram-se enormes ilusões com a CPI dos Bancos. Aos poucos, vão escorrendo entre nossos dedos e começamos a lamentar os projetos engavetados, as iniciativas inibidas, tudo porque o foco se concentra nas CPIs e suas emoções nada baratas.
O grande espetáculo da semana, a prisão de Chico Lopes no Senado, só pode envolver profundamente quem estava no calor dos debates. Visto de fora, era um enredo bastante débil, apenas uma revelação a mais de como a questão da competência em política transcende as efêmeras performances diante das câmeras.
Durante toda a semana, os advogados de Chico Lopes disseram que ele ia surpreender. Ninguém se incomodou em realizar um par de reuniões para prever as alternativas diante de uma surpresa. Os senadores reagiram como as pessoas surpreendidas pelas pegadinhas na tevê, essas que, confrontadas com uma situação insólita, combinam perplexidade com irritação.
Já havia alguma coisa errada nessa história de Chico Lopes. Aplaudiu-se a entrada na casa dele, porque estava baseada num mandato judicial. Devoraram-se os documentos revelados, sem nenhuma visão tática de investigação. Chico Lopes comportou-se como um réu, mas nem precisava, pois sabia de antemão todas as perguntas suscitadas pela devassa em sua casa.
Aplaudiu-se também pois os ricos estariam sendo tratados como pobres. A devassa na casa de um rico emociona. O programa de muita gente parece ser esse: tratar os ricos como se tratam os pobres. Duramente.
O programa deveria ser tratar os pobres como se tratam os ricos. Se tivessem a assistência jurídica sofisticada, muitos deles não iriam parar na cadeia, exerceriam plenamente seu direito de defesa.
Essa opção pela dureza acabou se revelando na ordem de prisão. Não quer assinar? Teje preso. Na verdade, havia outras opções, que deveriam estar ensaiadas com a mesma precisão de Chico Lopes e seus advogados. Não pode falar porque tem informações sigilosas? Decreta-se uma sessão secreta. Não quer assinar antes de falar? Pois bem, que fale, enfrente o interrogatório e, no final, vamos ver se assina ou não.
Qualquer dessas saídas seria melhor para o desenvolvimento das investigações. E era isto que deveria estar em jogo. Considerar-se desmoralizado porque um indivíduo explorou ao máximo suas possibilidades de defesa é um equívoco. Todas as investigações têm limites legais e dentro deles, e só dentro deles, é preciso caminhar.
Não deveríamos nos envergonhar de nossos limites. Negá-los, na verdade, esconde uma ponta de preguiça. Significa, de fato, esperar que um acusado revele todos os seus erros, forneça documentos, revele nomes e indique novos passos para a investigação. Isso não acontece na realidade. Basta conhecer o trabalho de um simples repórter para saber que, quanto mais e melhor se esconde algo, mais e melhor trabalha-se para descobrir o fato .
Pode ser que reviravoltas aconteçam, que novos e interessantes dados sejam jogados na mesa. Mas os grupos que ocuparam o centro da cena e prometeram uma agenda purificadora para o país já me transmitem um sinal de que o mês de abril foi meio perdido.
E nós, que tínhamos de encarar alguns problemas imediatos, como o desemprego, um novo salário mínimo, nós, que sonhávamos em apresentar projetos e travar grandes debates, ficamos meio acuados, nas cordas, esperando um melhor momento.
Mas já que as CPIs são o grande fato, eleito pelos políticos e pela mídia como aquilo com que devemos nos preocupar, todos ganhamos também o direito de criticar o espetáculo, propor novos enredos, desejar melhores papéis para os personagens principais.
Os dois fatos que eletrizaram a semana, a prisão de Chico Lopes e a perda de controle de Cacciola diante dos fotógrafos no Rio, pouco significam do ponto de vista dos objetivos definidos. São aquelas cenas que no futebol atraem as câmeras, mas acabam desaparecendo da lembrança do jogo: uma discussão sem bola, reclamações com o juiz diante de um pênalti duvidoso. Não contribuem com o resultado da partida.
A falta de horizonte da CPI já se desenhava antes de decretarem a prisão de Chico Lopes por algumas horas, mais uma viagem escoltado pelas ruas de Brasília. A descoberta e a revelação de um bilhete em sua casa mostrou que não se sabia o que fazer com o documento revelador. Era uma promessa de pagamento de quase US$ 1,7 milhão.
A grande revelação que foi passada à mídia: Lopes não declarou isto no imposto de renda. Mas como declarar algo que ainda não foi pago? E se o credor roer as cordas? Você fica de calças na mão diante do fisco?
A grande questão era saber a origem da dívida, se a empresa com um capital declarado tão baixo rendia isto mesmo ou se a soma resultou de operações obscuras, que não foram documentadas.
Sempre que a gente se coloca diante da história é preciso suspender um pouco a realidade, acreditar. Se os autores cometem muitos equívocos, você se desencanta e passa a sentir tédio diante do desdobramento do roteiro.
Vivemos uma guerra de grandes dimensões na Europa e uma crise econômica que deve jogar mais de 3 milhões de brasileiros na linha de pobreza. Se as CPIs não aprendem com os primeiros erros, podem se arrepender de ter ocupado o centro da cena num momento histórico dessa complexidade.
É preciso um certo compromisso com a realidade. Criar uma agenda nova, no auge de uma guerra e de uma crise econômica, só é pensável se houver um domínio completo de todos os lances. Pegadinhas, vemos nos programa dominicais à espera do jornal noturno, com os dramas de vida real. Deus me livre ter saudade do tempo em que tudo acabava em pizza.
Esta semana, tive medo de que tudo acabasse em pastelão.



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