São Paulo, segunda, 3 de maio de 1999

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HISTÓRIA
Revista dedica edição a peças produzidas nos últimos cinco séculos, muitas delas encontradas em Salvador
Azulejos no Brasil contam história portuguesa

Reprodução
Painel de azulejos da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, Salvador, Bahia, retrata construções de Liboa desaparecidas no terremoto de 1755


HAROLDO CERAVOLO SEREZA
enviado especial a Lisboa

Em 1755, Lisboa foi devastada por um terremoto. Mas a cidade que ruiu ainda é conhecida, em parte, devido aos painéis de azulejos de Salvador, na Bahia.
Nessa época, a azulejaria portuguesa, feita a pedido das ordens religiosas que se instalavam na principal colônia do império, era um instrumento de reafirmação dos poderes da Igreja Católica e de Portugal sobre o Brasil.
A revista "Oceanos", da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses (CNCDP), acaba de lançar um número duplo (36 e 37) dedicado à azulejaria portuguesa, especialmente a preservada no Brasil, coordenado por Sylvia Menezes de Athayde (Museu de Arte da Bahia). A edição, com um cuidado primoroso, é ilustrada, em boa parte, com fotografias feitas especialmente para o número.
O volume percorre a produção portuguesa do século 16 ao século 20, passando por movimentos artísticos como o barroco, rococó, neoclassicismo e modernismo.
"O Brasil guarda um espólio riquíssimo da azulejaria portuguesa", disse à Folha o historiador Paulo Henriques, diretor do Museu Nacional do Azulejo, de Portugal. "E os azulejos da Bahia do século 18 são o retrato de uma presença da Coroa muito ostensiva."
Os azulejos portugueses desse período, na opinião de Paulo Henriques, superaram em imaginação a pintura da época. Isso apesar de trabalharem, de uma forma geral, apenas com o cobalto (azul). A outra opção à época, o amarelo (manganês), fora abandonada por opção estética -influenciada por holandeses e, indiretamente, pela porcelana chinesa, a azulejaria portuguesa fez uma opção preferencial pelo azul.
Portugal é o país europeu no qual a arte da azulejaria mais se desenvolveu. O uso do material, desde o século 16, ultrapassou seus objetivos decorativos. Com mensagens religiosas ou políticas, seu conteúdo era explícito.
Os azulejos mostram cenas morais ou casamentos reais. Além disso, a perspectiva das figuras e a construção tridimensional ampliavam o campo visual, reorganizando os espaços para os quais os azulejos foram encomendados.
"No século 19, o azulejo deixa os espaços internos, vai para as fachadas e ganha um outro sentido", afirma Paulo Henriques. A partir da Independência do Brasil, a azulejaria refletiria uma herança do gosto português sobre o brasileiro, e não mais uma relação de poder. Paulo Henriques é um dos três pesquisadores do Museu do Azulejo que colaboraram com a revista. Seu texto é dedicado à azulejaria no século 20.
O gosto pelo azulejo, Portugal aprendeu com os holandeses. Da Holanda, vieram os primeiros painéis para o Brasil. A partir do fim do século 17, os azulejos das igrejas da Bahia passaram a ser encomendados nas oficinas de Lisboa.
"Toda a azulejaria portuguesa usada na Bahia no período colonial foi produzida nas oficinas de Lisboa, e as encomendas, feitas a partir das medições exatas dos locais a decorar, por vezes durante a realização das obras", escreve o historiador José Meco, em seu artigo "Azulejaria Portuguesa na Bahia".
Um dos principais eventos da história de Portugal, o casamento do príncipe d. José com d. Maria Ana da Áustria, é um registro histórico e artístico da Lisboa destruída pelo terremoto.
Os festejos do casamento que consolida a independência portuguesa da Espanha, em 1729, mobilizaram de tal modo o reino que a Ordem Terceira de São Francisco, em Salvador, encomendou painéis de azulejos para retratá-los. O conjunto barroco encontra-se no claustro da igreja.
O tratamento dado ao cortejo é rigoroso. Contudo, o mesmo não se pode dizer dos arcos triunfais, construídos por corporações de negociantes e ofícios e por nações estrangeiras.
"Os erros na representação de Belém e a total fantasia das imagens de Lisboa que servem de fundo ao cortejo, apesar de estes azulejos terem sido pintados em Lisboa, demonstram que raras vezes estes artistas tinham preocupações "fotográficas'", explica Meco. O fato político, no caso, é mais importante que a sua moldura.
A Lisboa setecentista também é retratada em dez painéis de 12 azulejos de altura, colocados na sala do consistório. Suas linhas gerais são identificáveis, mas, segundo o historiador, há pormenores fantasiados e deturpados.
Vizinho à Ordem Terceira de São Francisco, o Convento de São Francisco guarda no seu claustro um dos primorosos usos religiosos da arte da azulejaria.
Baseado nas gravuras de Otto van Veen publicadas no livro "Emblemas de Horácio", 37 painéis ali apresentados procuram associar imagens aos preceitos inscritos em latim. "A disciplina protege dos vícios" é um deles. O conjunto releva características barrocas tardias.
Para os religiosos, a associação de uma imagem a um dito favorecia a memorização, mas também a reflexão. Nas escadarias do convento, temas religiosos eram opostos a temas pagãos. Simbolizavam os dois caminhos possíveis da vida -um penoso, mas seguro, e um prazeroso, mas incerto.



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