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FERNANDO BONASSI
Os vermelhos
(Para o grupo teatral Linhas Aéreas)
No princípio era o vermelho...
O vermelho da luta com
as trevas. O vermelho do barro soprado e o fermento vermelho das
idéias. Todos fomos feitos à mesma imagem e semelhança daquele, num universo veloz que pretende o vermelho, conforme ensinaram Einstein e Jesus Cristo, às
suas maneiras.
Vermelhas são as frutas venenosas, vermelhas as entranhas saborosas. Vermelha é a vontade de
voltar sorrindo do que se partiu
chorando. Vermelhas larvas procriando. Vermelho é o tempo se
fechando num círculo vicioso.
Vermelho é o que mata. Vermelho é mais gostoso (e também ilegal, imoral e engorda).
O vermelho do ventre materno,
o vermelho do pênis paterno.
Igualmente vermelhos são os
membros de uma família de índios americanos. A inocência estampada na face dos puritanos.
Vermelhos são os tapetes em que
reis se esfregam nos súditos arrebatados. Vermelhas as Ferraris
dos bacanas. Vermelhas as frieiras dos coitados.
São vermelhas as doses de pimenta. O mesmo vermelho expelido na placenta. O vermelho inflamado da gengiva, o vermelho
excitável da vagina. Na calcinha,
o sangue derramado pela rosa da
menina. Vermelha é a tendência
do espinho. Vermelha é a chupada do carinho. Vermelho é o preço da maturidade. Vermelha é a
intenção da caridade.
A fraternidade é vermelha, dizem, mas não podemos esquecer
que o leão Trótski transformou
uma multidão amedrontada e esfomeada num exército vermelhíssimo de raiva. Já Stálin queria ser
o mais vermelho de todos os outros Josés e tratou de promover
um banho de desconfiança e terror. Vermelho era o tumor que
matou Lênin, embora Hitler também seguisse alguns conselhos dos
comunistas mais vermelhos em
suas bandeiras nazistas.
O Bradesco, o McDonald's, a
Coca-Cola. O capitalismo fica
vermelho, sem vergonha. Vermelho é o olho magoado da maconha!
É vermelho o cabelo das megeras. É vermelha a maçã da bruxa,
como vermelha é a flor da primavera. O Homem-Aranha, a Mulher Maravilha, o Super-Homem,
os super-heróis costumam ser supervermelhos de injustiça!
Há épocas mais vermelhas que
outras: épocas de morango e reivindicações; épocas de lagosta e
de porões; épocas de ibiscos e épocas de tensões. São épocas de alto
risco. O maior dentre os perigos!
A emergência destrambelhada
é igualmente vermelha. A cruz da
ambulância da Cruz Vermelha
suíça é vermelha. A lua crescente
é vermelha no Oriente. Vermelha
é a sunga do salva-vidas e o extrato de nossas dívidas. O rótulo das
bebidas. As árvores esquecidas (o
pau-brasil era vermelho). Vermelha é a telha do telhado. Vermelho é a tarja do remédio e o aviso
canceroso do cigarro.
Vermelho como o céu da boca se
vinga na ponta de nossa língua!
O entardecer, o alvorecer. O começo e o fim. A paixão, o tesão, o
amor. O cansaço, o inchaço, a
dor. A mão e a luva. A uva e o vinho. O freio, a porrada e o cartão.
O rubi, o rabanete, a emoção. O
cheque especial. A paciência nacional. O incêndio e o extintor de
incêndio. O bombeiro e o carro de
bombeiro. O sarampo e o catarro
do tuberculoso. A boca escancarada e o vestido escandaloso. A
luz indicativa dos prostíbulos. A
brasa dos churrascos mais festivos. A surpresa flagrada dos maridos. Decoração nos parques de
diversões. Vermelhos estandartes
das revoluções. A praça tomada.
O inferno em chamas. Os lençóis
da cama. O mercúrio cromo. O
raio laser. O caixa eletrônico...
O eletrochoque será vermelho
até debaixo d'água com groselha!
O cio volumoso das cadelas. As
cortinas penduradas nas janelas.
O molho preparado nas panelas.
Glóbulos vermelhos. Lápis vermelhos. Vermelhos os joelhos apoiados. Vermelhos os desejos conquistados. O batom dos colarinhos comprometedores. O avental respingado dos doutores. Os
naipes das cartas marcadas. Flamengo ocupando arquibancadas.
O segredo da melancia. O detalhe
de uma tatuagem. Revistas de sacanagem. O pano que o touro
odeia. O sol que nos rodeia. Lágrimas de saudade na cadeia. O ciúme assassino de Caim. A ferida
fratricida de Abel. A multidão enfurecida na arena. A gota derramada no poema.
Vermelho é o signo do espelho
onde nos fantasiamos de nós mesmos.
Vermelhas costas das joaninhas. Vermelhos aposentos das
rainhas. Vermelhas capas de enciclopédia. Vermelhas gargalhadas de comédia. Alguns vermelhos ficaram verdes depois de maduros. Um tomate esmagado, um
dinheiro trocado. Um rabo de galo, um ovo temperado. Um drinque por cima do outro pra afogar
o coração equivocado.
Vermelhas são as propostas dos
partidos (alguns partidos vermelhos chegaram ao poder e ficaram
vermelhos pelo que se dizem obrigados a fazer).
São sete os pecados vermelhos a
confessar: o orgulho é exclusivamente vermelho; a gula é incontrolavelmente vermelha; a ira é
violentamente vermelha; a cobiça
inevitavelmente vermelha; a luxúria é necessariamente vermelha; a preguiça é deliciosamente
vermelha, e a inveja... bem a inveja é uma merda mesmo.
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