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São Paulo, terça-feira, 03 de junho de 2003

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FERNANDO BONASSI

Os vermelhos

(Para o grupo teatral Linhas Aéreas)
No princípio era o vermelho...
O vermelho da luta com as trevas. O vermelho do barro soprado e o fermento vermelho das idéias. Todos fomos feitos à mesma imagem e semelhança daquele, num universo veloz que pretende o vermelho, conforme ensinaram Einstein e Jesus Cristo, às suas maneiras.
Vermelhas são as frutas venenosas, vermelhas as entranhas saborosas. Vermelha é a vontade de voltar sorrindo do que se partiu chorando. Vermelhas larvas procriando. Vermelho é o tempo se fechando num círculo vicioso. Vermelho é o que mata. Vermelho é mais gostoso (e também ilegal, imoral e engorda).
O vermelho do ventre materno, o vermelho do pênis paterno. Igualmente vermelhos são os membros de uma família de índios americanos. A inocência estampada na face dos puritanos. Vermelhos são os tapetes em que reis se esfregam nos súditos arrebatados. Vermelhas as Ferraris dos bacanas. Vermelhas as frieiras dos coitados.
São vermelhas as doses de pimenta. O mesmo vermelho expelido na placenta. O vermelho inflamado da gengiva, o vermelho excitável da vagina. Na calcinha, o sangue derramado pela rosa da menina. Vermelha é a tendência do espinho. Vermelha é a chupada do carinho. Vermelho é o preço da maturidade. Vermelha é a intenção da caridade.
A fraternidade é vermelha, dizem, mas não podemos esquecer que o leão Trótski transformou uma multidão amedrontada e esfomeada num exército vermelhíssimo de raiva. Já Stálin queria ser o mais vermelho de todos os outros Josés e tratou de promover um banho de desconfiança e terror. Vermelho era o tumor que matou Lênin, embora Hitler também seguisse alguns conselhos dos comunistas mais vermelhos em suas bandeiras nazistas.
O Bradesco, o McDonald's, a Coca-Cola. O capitalismo fica vermelho, sem vergonha. Vermelho é o olho magoado da maconha!
É vermelho o cabelo das megeras. É vermelha a maçã da bruxa, como vermelha é a flor da primavera. O Homem-Aranha, a Mulher Maravilha, o Super-Homem, os super-heróis costumam ser supervermelhos de injustiça!
Há épocas mais vermelhas que outras: épocas de morango e reivindicações; épocas de lagosta e de porões; épocas de ibiscos e épocas de tensões. São épocas de alto risco. O maior dentre os perigos!
A emergência destrambelhada é igualmente vermelha. A cruz da ambulância da Cruz Vermelha suíça é vermelha. A lua crescente é vermelha no Oriente. Vermelha é a sunga do salva-vidas e o extrato de nossas dívidas. O rótulo das bebidas. As árvores esquecidas (o pau-brasil era vermelho). Vermelha é a telha do telhado. Vermelho é a tarja do remédio e o aviso canceroso do cigarro.
Vermelho como o céu da boca se vinga na ponta de nossa língua!
O entardecer, o alvorecer. O começo e o fim. A paixão, o tesão, o amor. O cansaço, o inchaço, a dor. A mão e a luva. A uva e o vinho. O freio, a porrada e o cartão. O rubi, o rabanete, a emoção. O cheque especial. A paciência nacional. O incêndio e o extintor de incêndio. O bombeiro e o carro de bombeiro. O sarampo e o catarro do tuberculoso. A boca escancarada e o vestido escandaloso. A luz indicativa dos prostíbulos. A brasa dos churrascos mais festivos. A surpresa flagrada dos maridos. Decoração nos parques de diversões. Vermelhos estandartes das revoluções. A praça tomada. O inferno em chamas. Os lençóis da cama. O mercúrio cromo. O raio laser. O caixa eletrônico...
O eletrochoque será vermelho até debaixo d'água com groselha!
O cio volumoso das cadelas. As cortinas penduradas nas janelas. O molho preparado nas panelas. Glóbulos vermelhos. Lápis vermelhos. Vermelhos os joelhos apoiados. Vermelhos os desejos conquistados. O batom dos colarinhos comprometedores. O avental respingado dos doutores. Os naipes das cartas marcadas. Flamengo ocupando arquibancadas. O segredo da melancia. O detalhe de uma tatuagem. Revistas de sacanagem. O pano que o touro odeia. O sol que nos rodeia. Lágrimas de saudade na cadeia. O ciúme assassino de Caim. A ferida fratricida de Abel. A multidão enfurecida na arena. A gota derramada no poema.
Vermelho é o signo do espelho onde nos fantasiamos de nós mesmos.
Vermelhas costas das joaninhas. Vermelhos aposentos das rainhas. Vermelhas capas de enciclopédia. Vermelhas gargalhadas de comédia. Alguns vermelhos ficaram verdes depois de maduros. Um tomate esmagado, um dinheiro trocado. Um rabo de galo, um ovo temperado. Um drinque por cima do outro pra afogar o coração equivocado.
Vermelhas são as propostas dos partidos (alguns partidos vermelhos chegaram ao poder e ficaram vermelhos pelo que se dizem obrigados a fazer).
São sete os pecados vermelhos a confessar: o orgulho é exclusivamente vermelho; a gula é incontrolavelmente vermelha; a ira é violentamente vermelha; a cobiça inevitavelmente vermelha; a luxúria é necessariamente vermelha; a preguiça é deliciosamente vermelha, e a inveja... bem a inveja é uma merda mesmo.


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