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CONTARDO CALLIGARIS
Vitória da intimidade
A Suprema Corte dos EUA
acaba de chegar a uma decisão relevante, embora engraçada
pelo atraso.
Eis os fatos. No começo dos anos
90, em 23 Estados dos EUA (quase
a metade da Federação), ainda
estavam em vigor leis que proibiam a prática do sexo anal e
oral. Até a semana passada, 13
Estados mantinham a interdição.
Alguns, como o Texas, castigavam diretamente a homossexualidade. Outros, como era o caso
da Geórgia, definiam como sodomia o delito de qualquer pessoa
"que pratique ou se submeta a
um ato sexual que envolva os órgãos sexuais de uma pessoa e a
boca ou o ânus de outra".
Com a decisão atual da Suprema Corte, essas leis tornam-se caducas. Aconteceu assim: em 1998, a polícia do Texas foi chamada,
parece, por um cidadão que ouvia
gritos num apartamento próximo
ao seu. Os agentes, entrando no
aposento, esbarraram em dois
homens, J.G. Lawrence e T. Garner, engajados em sexo anal. Os
amantes foram punidos com uma
multa de US$ 200.
Lawrence e Garner contestaram a constitucionalidade da lei
que os reprimia. Na semana passada, eles ganharam a batalha final. Por maioria de 6 a 3, a Suprema Corte dos EUA decretou que a
Constituição americana garante
o direito dos cidadãos à privacidade. Como os atos não feriam o
pudor de ninguém, eram consensuais e não envolviam menores,
Lawrence e Garner estavam livres
para fazer o amor como bem entendessem, na tranquilidade de
suas casas.
Os juízes minoritários, que se
opuseram à deliberação, manifestaram seu dissenso. O juiz Scalia
argumentou que a homossexualidade seria contrária ao sentimento moral da comunidade. O juiz Thomas afirmou que, a seu ver,
em nenhum artigo a Constituição
americana garantiria um direito
dos cidadãos à privacidade, ou seja, a serem deixados em paz pela
comunidade.
Os argumentos são, de fato,
complementares. Pois, se não
existe direito à privacidade, é lógico que a qualidade moral e legal das condutas íntimas seja decidida pela comunidade. Nessa
perspectiva, aliás, para decidir
democraticamente se o sexo oral e
anal devem ser proibidos por lei,
poderíamos recorrer a um referendo (a campanha seria divertida). Será que a voz das urnas
proibiria a homossexualidade?
Certamente os heterossexuais seriam autorizados (enfim, não é?)
a praticar sexo oral e anal. Por
sorte dos juízes Scalia e Thomas, o
ridículo não mata.
Esqueçamos, por um instante,
que a Suprema Corte apenas ratificou uma mudança no senso comum. E consideremos o argumento que sustentou a decisão da
corte: o direito à privacidade.
A Constituição brasileira (título
II, artigo 5º) declara que a intimidade e a vida privada dos cidadãos são invioláveis. Mas ela foi
escrita menos de 20 anos atrás,
enquanto a Constituição dos
EUA entrou em vigor em 1787.
Hoje nos parece óbvio reconhecer a intimidade como espaço autônomo em que a comunidade
não se mete. A coisa começou com
a idéia romântica de que as afinidades (amizades, amores etc.) são
eletivas (decididas por opção, não
por tradição, obrigação ou convenção). E continua com a livre
escolha dos parceiros e dos gestos
do sexo e do amor. Não há costume nem moral pseudo-racional
(tipo: o sexo deveria servir à reprodução) que valham: o indivíduo é árbitro de seus prazeres privados.
Foram necessários dois séculos
para que essas idéias se consolidassem e para que o espaço autônomo da intimidade se ampliasse. A ponto de acharmos normal
escolher uma profissão por gosto,
e não segundo as necessidades da
sociedade. Ou decidirmos ter filhos ou não sem perguntar se a
comunidade precisa de braços ou
cresce demais. A legalização do
aborto, nos EUA, foi justamente
um efeito do reconhecimento da
autonomia na vida íntima.
Em suma, ao estilo de Anthony
Giddens (em "A Transformação
da Intimidade"), podemos festejar o triunfo da livre intimidade
do homem moderno.
Mas voltemos ao dissenso do
juiz Scalia. A indignação o leva a
antecipar um mundo (devasso
aos seus olhos) em que as leis se
dobrariam ao capricho íntimo do
indivíduo. Se posso escolher que
meu parceiro seja do mesmo sexo
que eu, por que não pediria que a
lei sancionasse o casamento gay?
Scalia fica horrorizado. Eu, ao
contrário, aprovo o pedido. Na
mesma linha, por que a comunidade me impediria de usar drogas na privacidade de minha casa? Ou de prostituir livremente
meu corpo? De novo, Scalia ficaria horrorizado. Quanto a mim,
desta vez, aprovo, mas tenho ressalvas.
Ora, ressalvas em nome de quê?
O mundo da intimidade livre é o
mundo que prefiro. Mas resta
que, nesse mundo, fica difícil inventar regras ou mesmo ressalvas
que valham para todos. À força
de ampliar a intimidade, perde-se
o sentido de uma lei que tenha
dignidade e autoridade coletivas.
E a diferença é frágil entre a liberdade de nossos desejos íntimos e a
selvageria que reconheceria a cada um o bom direito de perseguir
sempre sua vantagem exclusiva.
O que nos ameaça, por sermos
modernos, não é tanto a sociedade devassa que receia Scalia, mas
uma sociedade dissoluta, ou seja,
desfeita pela falta de normas propriamente sociais.
ccalligari@uol.com.br
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