São Paulo, sábado, 03 de julho de 2004

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"O CARNAVAL DAS LETRAS"

Ensaio ilumina mitos da folia local

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

O Carnaval , o samba e o futebol são o retrato do brasileiro, manifestações que falam de perto a nosso instinto de nacionalidade, que nos unem e nos definem numa mesma emoção. Idéias como essas são alardeadas a torto e a direito, mas até que ponto condizem com a realidade?
Não muito, a julgar por estudos, surgidos nas décadas de 1980 e 90, que procuram mostrar que, por trás dessas visões totalizadoras, vagamente pedagógicas e fortemente edulcoradas, existe todo um jogo de tensões, de disputa entre grupos sociais que se digladiam através da história.
É nessa corrente de pensamento que se insere "O Carnaval das Letras", de Leonardo Affonso de Miranda Pereira, que examina a relação entre os escritores da belle époque carioca e as orgias de momo. Naquela época, todos escreviam sobre o Carnaval, de Machado de Assis a Olavo Bilac, de Coelho Netto a Raul Pompéia. Muitos participaram ativamente da folia. (José de Alencar e Manuel Antônio de Almeida fundaram a primeira sociedade carnavalesca brasileira de que se tem notícia.) Outros, como Arthur Azevedo, eram tema de cortejos.
Pereira centra seu estudo em quatro textos literário-jornalísticos, dentre os quais um conto de Raul Pompéia e uma crônica de Machado de Assis, para mostrar como os escritores brasileiros, munidos das melhores intenções, ajudaram a firmar uma idéia falsa do Carnaval.
Segundo essa concepção, o entrudo (a velha guerra de água, farinha e outras substâncias menos nobres) e os foliões avulsos, associados ao antigo regime monárquico, estavam sendo atropelados, na evolução histórica, pelos desfiles finos e democráticos das Grandes Sociedades, calcados no modelo veneziano. Depois, desencantados com os rumos de seu projeto de civilizar as massas, os literatos chegam a decretar a morte da folia.
Nada disso, na verdade, ocorreu. Nem os entrudos terminaram de vez nem os desfiles eram um modelo de ordem (ou, se eram, foi graças a pesada repressão policial). E, é claro, quem morreu não foi o Carnaval, mas as Grandes Sociedades.
A realidade é bem mais complexa; pouco afeita a projetos que procuram moldar os fenômenos sociais de fora para dentro.
Pereira mostra, nas entrelinhas dos textos, como essas contradições já estavam presentes, embora escamoteadas pela maioria dos autores.
A pesquisa não se restringe aos quatro textos principais, mas a inúmeros outros, muitos dos quais hoje esquecidos. Suas fontes são jornais da época, relatos de viajantes, documentos manuscritos, biografias, além de obras literárias de segunda ordem.
A análise às vezes falha. O caso evidente é o de Machado de Assis. Há algum tempo, instituiu-se o hábito sadio de ler os textos do bruxo do Cosme Velho, hábil ironista, na contramão do que afirmam seus narradores. Mas há ocasião em que é preferível ficar atento ao que Machado está dizendo, em vez de buscar o sentido avesso de seu discurso.
Na crônica examinada, Pereira argumenta que o narrador adota o discurso tradicional sobre a folia para que Machado possa pôr em xeque "os sentidos unívocos para o Carnaval". Na verdade, a festa é apenas a moldura expressiva dentro da qual Machado focaliza a fragilidade da ordem política, no ano em que a República viria a ser instaurada.
Deslizes à parte, trata-se de um ensaio sério e esclarecedor, que tem a vantagem de ser uma crônica agradável de ler, sobre homens e idéias que inspiraram, para o bem e para o mal, muitas das imagens que até hoje se veiculam sobre o Brasil.


O Carnaval das Letras
   
Autor: Leonardo Affonso de Miranda Pereira
Editora: Unicamp
Quanto: R$ 28 (320 págs.)



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