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"O CARNAVAL DAS LETRAS"
Ensaio ilumina mitos da folia local
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
O Carnaval , o samba e o futebol são o retrato do brasileiro, manifestações que falam de
perto a nosso instinto de nacionalidade, que nos unem e nos definem numa mesma emoção.
Idéias como essas são alardeadas
a torto e a direito, mas até que
ponto condizem com a realidade?
Não muito, a julgar por estudos,
surgidos nas décadas de 1980 e 90,
que procuram mostrar que, por
trás dessas visões totalizadoras,
vagamente pedagógicas e fortemente edulcoradas, existe todo
um jogo de tensões, de disputa
entre grupos sociais que se digladiam através da história.
É nessa corrente de pensamento
que se insere "O Carnaval das Letras", de Leonardo Affonso de Miranda Pereira, que examina a relação entre os escritores da belle
époque carioca e as orgias de momo. Naquela época, todos escreviam sobre o Carnaval, de Machado de Assis a Olavo Bilac, de Coelho Netto a Raul Pompéia. Muitos
participaram ativamente da folia.
(José de Alencar e Manuel Antônio de Almeida fundaram a primeira sociedade carnavalesca
brasileira de que se tem notícia.)
Outros, como Arthur Azevedo,
eram tema de cortejos.
Pereira centra seu estudo em
quatro textos literário-jornalísticos, dentre os quais um conto de
Raul Pompéia e uma crônica de
Machado de Assis, para mostrar
como os escritores brasileiros,
munidos das melhores intenções,
ajudaram a firmar uma idéia falsa
do Carnaval.
Segundo essa concepção, o entrudo (a velha guerra de água, farinha e outras substâncias menos
nobres) e os foliões avulsos, associados ao antigo regime monárquico, estavam sendo atropelados, na evolução histórica, pelos
desfiles finos e democráticos das
Grandes Sociedades, calcados no
modelo veneziano. Depois, desencantados com os rumos de seu
projeto de civilizar as massas, os
literatos chegam a decretar a morte da folia.
Nada disso, na verdade, ocorreu. Nem os entrudos terminaram de vez nem os desfiles eram
um modelo de ordem (ou, se
eram, foi graças a pesada repressão policial). E, é claro, quem
morreu não foi o Carnaval, mas as
Grandes Sociedades.
A realidade é bem mais complexa; pouco afeita a projetos que
procuram moldar os fenômenos
sociais de fora para dentro.
Pereira mostra, nas entrelinhas
dos textos, como essas contradições já estavam presentes, embora escamoteadas pela maioria dos
autores.
A pesquisa não se restringe aos
quatro textos principais, mas a
inúmeros outros, muitos dos
quais hoje esquecidos. Suas fontes
são jornais da época, relatos de
viajantes, documentos manuscritos, biografias, além de obras literárias de segunda ordem.
A análise às vezes falha. O caso
evidente é o de Machado de Assis.
Há algum tempo, instituiu-se o
hábito sadio de ler os textos do
bruxo do Cosme Velho, hábil ironista, na contramão do que afirmam seus narradores. Mas há
ocasião em que é preferível ficar
atento ao que Machado está dizendo, em vez de buscar o sentido
avesso de seu discurso.
Na crônica examinada, Pereira
argumenta que o narrador adota
o discurso tradicional sobre a folia
para que Machado possa pôr em
xeque "os sentidos unívocos para
o Carnaval". Na verdade, a festa é
apenas a moldura expressiva dentro da qual Machado focaliza a
fragilidade da ordem política, no
ano em que a República viria a ser
instaurada.
Deslizes à parte, trata-se de um
ensaio sério e esclarecedor, que
tem a vantagem de ser uma crônica agradável de ler, sobre homens
e idéias que inspiraram, para o
bem e para o mal, muitas das imagens que até hoje se veiculam sobre o Brasil.
O Carnaval das Letras
Autor: Leonardo Affonso de Miranda
Pereira
Editora: Unicamp
Quanto: R$ 28 (320 págs.)
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