São Paulo, terça-feira, 03 de julho de 2007

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BERNARDO CARVALHO

Ninguém é perfeito


Resenhas literárias de J.M. Coetzee expõem defeitos até de nomes como Beckett e Faulkner


AS RESENHAS literárias costumam revelar tanto (ou mais) sobre o crítico que as escreve quanto sobre o livro que elas criticam. Num mundo onde uma literatura quadrada e convencional vai ganhando força e se tornando consensual sob os auspícios de críticos cujos modelos literários, submetidos à hegemonia do mercado (sobretudo o anglo-saxão), se igualam cada vez mais aos preconceitos iletrados dos blogs, um resenhista como J.M. Coetzee é uma bem-vinda exceção. Os prefácios e resenhas do escritor sul-africano reunidos em "Inner Workings" (mecanismos internos), a maioria publicada no "The New York Review of Books" entre 2000 e 2005, são bem informados e demonstram, também na leitura, o rigor de um dos maiores romancistas da atualidade. "Inner Workings", lançado neste ano em inglês, ainda não tem data para sair no Brasil. Coetzee (pronuncia-se "coutsia") é a principal atração da 5ª Flip, que começa amanhã.
O rigor de fato revela muito sobre esse autor de livros extraordinários, como "Vida e Época de Michael K." e "Desonra". O próprio título da coletânea é um indício. Nos ensaios, Coetzee esmiuça os mecanismos internos das obras que analisa, como alguém cuja curiosidade não se satisfaz enquanto não desmontar a máquina do relógio que lhe mostra as horas.
Nada pode lhe causar maior horror do que a hagiografia. Não é dado a simpatia nem magnanimidade. Pode estar falando de Faulkner ou de Beckett, figuras incontestáveis do panteão da literatura ocidental, mas, apesar da sua declarada admiração por esses escritores, sempre terá, entre os elogios, algo a dizer sobre uma imperfeição ou outra, um lapso em suas obras. Por mais que reconheça a genialidade deles, terá sempre alguma coisa a apontar, um senão capaz de fazê-los descer do pedestal ao qual foram alçados, de volta para o mundo dos homens.
Como se tentasse restabelecer um elo perdido com o espírito protestante depois de anos de educação católica, Coetzee não deixa passar nada. Julga obras e autores com secura e extrema severidade. Por mais geniais que sejam considerados, terão sempre escorregado em algum momento e, por isso, devem ser desmistificados. É como se estivesse imbuído de uma missão justiceira, enviado ao mundo para pôr os pingos nos is, cada coisa de volta no seu devido lugar -o que, no caos atual, quando já não se distingue entre a grandeza de Kafka e a de Sandor Marai, não deixa de ser uma tarefa divina.
Sobre Marai, justamente, um escritor prolífico por muito tempo ignorado fora da Hungria e de repente redescoberto pelo mercado internacional no final dos anos 90, Coetzee fala da linguagem inflada ("overblown") e dá a entender que o kitsch ali presente talvez não seja só ironia.
Muitas vezes, é só um tom ou um comentário aparentemente insignificante, mas suficiente para destilar a antipatia nas entrelinhas. Coetzee sabe o que é literatura de verdade. Suas opiniões são, em geral, muito pertinentes. Estão impregnadas do bom senso que mais faz falta à crítica atual, reduzida a agente reprodutor do gosto do público, a serviço do mercado. E a própria seleção de escritores (Italo Svevo, Robert Walser, Robert Musil, Bruno Schulz, Paul Celan, Samuel Beckett, William Faulkner, Saul Bellow etc.) já é um bom sinal.
Mas há uma contrapartida a todo esse rigor. Como a literatura é um ofício subjetivo, o crítico precisa julgar com base em modelos que ele elege e que serão sempre relativos. É o que permite à literatura se reinventar e se renovar sempre. Nos ensaios de Coetzee, como ninguém está isento de faltas e imperfeições, o modelo se torna abstrato, absoluto, e a literatura, criação dos homens, passa a ser inatingível em sua totalidade, irrealizável na sua perfeição potencial.
Nenhum escritor está à altura da literatura como Coetzee a concebe por ausência. Sua desmistificação generalizada dos autores e das obras reais acaba por mistificar a literatura num modelo de excelência abstrata, petrificado para além do humano, fazendo dela uma religião. Se a leitura dos seus melhores livros de ficção inspiram a criação literária (inclusive por causa de suas imperfeições), a de seus ensaios, em compensação, por mais realistas e sensatos que sejam ao separar o joio do trigo, tem um efeito castrador.
Coetzee se recusa a falar sobre a própria obra, o que, com bons olhos, poderia ser visto como sinal de modéstia e sobriedade. Mas, a julgar por seus ensaios literários, é muito possível que o autor esteja apenas poupando sua obra de si mesmo.


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