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LIVROS LANÇAMENTOS
Dicionário (des)organiza século da rebeldia
HAROLDO CERAVOLO SEREZA
de Paris
Século da rebeldia ou século
da autoridade?
O dicionário da
contestação no
século 20, lançado na França pela Larousse, lista
500 verbetes, relacionados a transgressões comportamentais, violências políticas, movimentos sociais, manifestos artísticos e obras-primas que se opuseram ao estabelecido no período.
O livro não diz, mas, se a revolta
está em todas as partes, é porque a
autoridade, neste século, também
chegou a todos os lugares.
Na Inglaterra, por exemplo, surgem as raves, festas que, a partir do
final dos anos 80, procuram burlam a regra que obriga os clubes
londrinos a fechar às 2h. Na mesma cidade, as ruas dos bairros considerados mais perigosos hoje são
vigiadas por redes de câmeras de
televisão.
"Le Siècle Rebelle - Dictionaire
de la Contestation au 20e Siècle" (O
Século Rebelde - Dicionário da
Contestação no Século 20), coordenado pelo historiador Emmanuel de Waresquiel, traz 672 páginas organizadas em ordem alfabética.
Amor livre, biquíni, comunismo
antibolchevique, dadá, Franz Kafka, fascismo revolucionário, guerrilha, raves, a lista é quase interminável.
Na opinião do autor, "desordem
alfabética", uma vez que a própria
organização desorganiza, misturando assuntos: anarco-sindicalismo, antropofagia, antiamericanismo, antiapartheid são assuntos
que se seguem, sem que estejam
diretamente relacionados entre si.
Um dos verbetes, dedicado ao
Cabaret Voltaire, faz um bom painel do que foi a rebeldia no século.
Em Zurique, em plena Primeira
Guerra Mundial, um grupo de artistas -reunidos em torno do dramaturgo e poeta Hugo Ball- lança
o dadá, marco da desconstrução da
ordem artística no século. Ball era
um ativista pacifista, e Zurique, na
Suíça, país neutro, um encrave de
paz na Europa.
Lá viveram James Joyce, escrevendo "Ulysses", Jorge Luis Borges, aprendendo francês, e Lênin,
organizando seu partido, cada um
deles preparando a sua própria rebelião, conta Judith Siony, a historiadora autora da verbete.
Numa atmosfera um pouco menos carregada, esses intelectuais
foram capazes de romper com as
regras que, literalmente, os cercavam.
Cada um deles, assim, recusou o
mundo em que vivia, buscando
uma utopia, seja artística, seja política.
Enquadraram-se, desse modo,
nas condições para virar verbete
do dicionário.
"Rebelde, do latim "rebellis':
"quem recomeça a guerra", quem se
recusa a obedecer, quem se revolta
contra a autoridade", lembra Waresquiel.
"Sou contra os sistemas, o mais
aceitável dos sistemas é não existir
sistema algum", escreveu o romeno Tristan Tzara no "Manifesto
Dadá", de 1918. Hoje, o dadá -ou
dadaísmo-, ele próprio virou um
método de produção artística
-ou um sistema.
No século em que os intelectuais
descobriram o poder de suas opiniões, os manifestos ganham um
destaque especial.
O "Eu Acuso...!", de Émile Zola,
em defesa do capitão judeu Richard Dreyfus, injustamente acusado de traição na França, tem seu
tópico. Outros documentos importantes foram reunidos numa
página ilustrada.
O primeiro destacado, publicado
no jornal "L'Humanité" em 1919,
após a Primeira Guerra Mundial,
assinado por Albert Einstein, Bertrand Russel e Stefan Zweig, defende uma "união fraternal de todos
os povos".
Em 1971, 343 mulheres declaram,
em texto publicado pela revista "Le
Nouvel Observateur", ter praticado aborto, ainda proibido na França -entre elas, Simone de Beauvoir, Catherine Deneuve e Marguerite Duras. Em 1974, a prática
era legalizada pelo país.
Na mesma linha, em 1976, 15.940
pessoas declaram já ter fumado
maconha em diversas ocasiões,
após um apelo publicado no jornal
"Libération" (este também um
item). A droga, no entanto, continua prescrita -e, como tal, tem
um verbete só para ela.
Intelectuais como o italiano Antonio Gramsci e os franceses Michel Foucault e Gilles Delleuze
também têm seus verbetes próprios. Há, claro, os óbvios: Ernesto
Che Guevara, Mao Tsé-tung e Nelson Mandela.
Mas talvez ainda mais significativa seja a ausência de Fidel Castro.
Responsável pela consolidação da
barba como símbolo do revolucionário latino-americano, Castro parece ter sido preterido pelo que é e
representa -ordem-, e não pelo
que foi e representou -rebeldia. O
mesmo acontece com o rock, que
está presente em tópicos paralelos
-festivais, Elvis, Beatles e Rolling
Stones-, mas nunca "autônomo".
Nessa era de extremos, a contestação vira ordem, rapidamente. E
quem não aceita esse triste destino
padece.
Nos verbetes do dicionários, casos como esse são correntes. Dois
exemplos: o de Malcolm X e o dos
marinheiros de Kronstadt, no mar
Báltico.
Malcolm X, líder negro norte-americano, que pregava o direito à
autodefesa dos negros, foi assassinado em Nova York em 1965.
Os militares de Kronstadt foram
um dos motores da Revolução de
1905, que deu início ao processo
que levaria os bolcheviques ao poder em 1917. Em 1921, quatro anos
mais tarde, os marinheiros mais
uma vez se revoltaram, agora contra a repressão política praticada
pelos bolcheviques. Foram massacrados.
Livro: Le Siècle Rebelle - Dictionaire de la
Constestation au 20e Siècle
Organização: Emmanuel de Waresquiel
Lançamento: Larousse
Quanto: R$ 132,30 (importado pela livraria
Cultura)
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