São Paulo, sexta-feira, 03 de agosto de 2001

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CINEMA

"Escola iraniana" passa longe da ingenuidade

CRÍTICO DA FOLHA

Desde a primeira cena, "O Círculo" pode ser visto como um manifesto sobre a situação da mulher no Irã.
Nessa cena, uma senhora é informada de que sua filha teve uma menina. A mulher pergunta à enfermeira se não houve engano, pois segundo a ultra-sonografia a criança seria um menino.
Diante da confirmação, ela se afasta entristecida e preocupada, já que a família do marido esperava por um filho homem. Agora, com a menina, é bem possível que ele queira a separação.
O que vem a seguir justifica sua tristeza. Primeiro, vemos algumas mulheres que tentam fazer coisas tão triviais como embarcar em um ônibus intermunicipal ou hospedar-se em um hotel. Não conseguem. Sem um marido ou certos documentos, nada feito.
O filme mostrará, ainda, outras mulheres e a mesma situação opressiva. Até para fumar um cigarro as coisas são mais difíceis para as mulheres.
Vistas as coisas desse modo, o interesse pelo novo filme de Jafar Panahi pode parecer restrito. Podemos ter cá nossas mazelas, mas, em comparação com o tratamento dado às mulheres em certos lugares, as nossas não têm muito do que se queixar.
No entanto, olhando um pouco mais, o filme oferece certas semelhanças lancinantes com o Brasil. A diferença é que em "O Círculo" as mulheres é que sofrem para obter uma informação banal, por exemplo, enquanto no Brasil qualquer um, homem ou mulher, pode ser sujeito às mesmas vicissitudes, desde que não seja rico ou informado.
Mas é no aspecto cinematográfico que este filme chama a atenção em especial.
Panahi, provavelmente o mais talentoso discípulo de Abbas Kiarostami, ficou conhecido com "O Balão Branco", em que seguia as pegadas do mestre com fidelidade. Em "O Espelho", a partir de certo ponto, ele parecia se distanciar e caminhar em busca de seu próprio estilo.
Em "O Círculo" já é uma personalidade própria que se manifesta plenamente. Panahi é um realista mais próximo da tradição americana, enquanto Kiarostami é mais europeu.
Sobretudo na primeira parte de "O Círculo", sabe trabalhar com maestria dois aspectos característicos do que há de melhor no cinema americano: o suspense -no sentido de capacidade de plantar expectativas, de intrigar o espectador, de fazê-lo partilhar o destino de suas protagonistas- e a capacidade de, pelo cultivo obsessivo do detalhe, descrever um mundo prosaico -os gestos do cotidiano, a movimentação das ruas, os sentimentos imediatos de uma pessoa em relação a tais e tais acontecimentos.
Isso não significa que Panahi volte as costas para o que se pode chamar de "escola iraniana". Ali estão os planos longos, que preservam a unidade espacial, a ação captada diretamente nas ruas, a percepção das turbulências que agitam uma grande cidade etc. Nesse sentido, a herança do neo-realismo italiano está presente também neste filme.
A primeira metade de "O Círculo" é claramente superior à segunda, em que o autor acaba se deixando levar ora por algum excesso retórico ora por certo pendor melodramático.
Este último se manifesta, aliás, na mesma sequência que tem alguns dos planos mais fortes do filme: aquela em que uma mãe abandona sua filha.
A cena da menininha, vista à distância, andando de mãos dadas com um homem, diante de um hotel, é uma imagem de desamparo que faz lembrar, pelo que tem de tocante, o melhor Vittorio de Sica (o de "Ladrões de Bicicletas" ou "Umberto D"). Por outro lado, é como que uma homenagem a "M - O Vampiro de Dusseldorf", de Fritz Lang.
Ela deixa claro -para quem tivesse alguma dúvida- que o cinema do Irã: 1) está longe de ser ingênuo; 2) tem um alcance que está longe de ser local, aliás, é claramente universal.
(INÁCIO ARAUJO)


O Círculo
Dayereh
   
Direção: Jafar Panahi
Produção: Irã, 2000
Com: Fereshteh Sadr Orafai, Fatemeh Naghavi, Nargess Mamizadeh
Quando: a partir de hoje no Unibanco Arteplex, em São Paulo




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