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CINEMA
"Escola iraniana" passa longe da ingenuidade
CRÍTICO DA FOLHA
Desde a primeira cena, "O
Círculo" pode ser visto como um manifesto sobre a situação da mulher no Irã.
Nessa cena, uma senhora é informada de que sua filha teve uma
menina. A mulher pergunta à enfermeira se não houve engano,
pois segundo a ultra-sonografia a
criança seria um menino.
Diante da confirmação, ela se
afasta entristecida e preocupada,
já que a família do marido esperava por um filho homem. Agora,
com a menina, é bem possível que
ele queira a separação.
O que vem a seguir justifica sua
tristeza. Primeiro, vemos algumas
mulheres que tentam fazer coisas
tão triviais como embarcar em
um ônibus intermunicipal ou
hospedar-se em um hotel. Não
conseguem. Sem um marido ou
certos documentos, nada feito.
O filme mostrará, ainda, outras
mulheres e a mesma situação
opressiva. Até para fumar um cigarro as coisas são mais difíceis
para as mulheres.
Vistas as coisas desse modo, o
interesse pelo novo filme de Jafar
Panahi pode parecer restrito. Podemos ter cá nossas mazelas, mas,
em comparação com o tratamento dado às mulheres em certos lugares, as nossas não têm muito do
que se queixar.
No entanto, olhando um pouco
mais, o filme oferece certas semelhanças lancinantes com o Brasil.
A diferença é que em "O Círculo"
as mulheres é que sofrem para obter uma informação banal, por
exemplo, enquanto no Brasil
qualquer um, homem ou mulher,
pode ser sujeito às mesmas vicissitudes, desde que não seja rico ou
informado.
Mas é no aspecto cinematográfico que este filme chama a atenção em especial.
Panahi, provavelmente o mais
talentoso discípulo de Abbas Kiarostami, ficou conhecido com "O
Balão Branco", em que seguia as
pegadas do mestre com fidelidade. Em "O Espelho", a partir de
certo ponto, ele parecia se distanciar e caminhar em busca de seu
próprio estilo.
Em "O Círculo" já é uma personalidade própria que se manifesta
plenamente. Panahi é um realista
mais próximo da tradição americana, enquanto Kiarostami é mais
europeu.
Sobretudo na primeira parte de
"O Círculo", sabe trabalhar com
maestria dois aspectos característicos do que há de melhor no cinema americano: o suspense -no
sentido de capacidade de plantar
expectativas, de intrigar o espectador, de fazê-lo partilhar o destino de suas protagonistas- e a capacidade de, pelo cultivo obsessivo do detalhe, descrever um mundo prosaico -os gestos do cotidiano, a movimentação das ruas,
os sentimentos imediatos de uma
pessoa em relação a tais e tais
acontecimentos.
Isso não significa que Panahi
volte as costas para o que se pode
chamar de "escola iraniana". Ali
estão os planos longos, que preservam a unidade espacial, a ação
captada diretamente nas ruas, a
percepção das turbulências que
agitam uma grande cidade etc.
Nesse sentido, a herança do neo-realismo italiano está presente
também neste filme.
A primeira metade de "O Círculo" é claramente superior à segunda, em que o autor acaba se deixando levar ora por algum excesso retórico ora por certo pendor
melodramático.
Este último se manifesta, aliás,
na mesma sequência que tem alguns dos planos mais fortes do filme: aquela em que uma mãe
abandona sua filha.
A cena da menininha, vista à
distância, andando de mãos dadas com um homem, diante de
um hotel, é uma imagem de desamparo que faz lembrar, pelo
que tem de tocante, o melhor Vittorio de Sica (o de "Ladrões de Bicicletas" ou "Umberto D"). Por
outro lado, é como que uma homenagem a "M - O Vampiro de
Dusseldorf", de Fritz Lang.
Ela deixa claro -para quem tivesse alguma dúvida- que o cinema do Irã: 1) está longe de ser
ingênuo; 2) tem um alcance que
está longe de ser local, aliás, é claramente universal.
(INÁCIO ARAUJO)
O Círculo
Dayereh
Direção: Jafar Panahi
Produção: Irã, 2000
Com: Fereshteh Sadr Orafai, Fatemeh
Naghavi, Nargess Mamizadeh
Quando: a partir de hoje no Unibanco
Arteplex, em São Paulo
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