São Paulo, terça-feira, 03 de agosto de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

BERNARDO CARVALHO

Eu vivo neste mundo

O Teatro da Vertigem estava determinado a não tratar mais de temas religiosos quando decidiu embarcar numa viagem de pesquisa por três lugares (Brasilândia, periferia de São Paulo; Brasília, Distrito Federal; e Brasiléia, na fronteira do Acre com a Bolívia) unidos pelo mesmo radical.
Em 12 anos de existência, o grupo criou três espetáculos ("O Paraíso Perdido", "O Livro de Jó" e "Apocalipse 1,11") que ficaram conhecidos como "trilogia bíblica". O novo projeto, para o qual fui convidado como dramaturgo, teria que ser laico. O grupo só não contava com a lógica peculiar que garante uma igreja evangélica a cada esquina de Brasilândia e em cada povoado, por menor que seja, ao longo dos mais de 4.000 quilômetros de estrada percorridos, em julho, entre São Paulo e o Acre. A mesma lógica que deve explicar o fato igualmente peculiar de haver um crucifixo coroando o plenário da Câmara no Congresso Nacional, à imagem de uma igreja.
E embora soubesse de tudo isso, o Teatro da Vertigem não podia imaginar a que ponto Brasília é uma Disneylândia mística, celeiro das seitas mais ecléticas, que vão do alucinante Vale do Amanhecer a outras manifestações originais, em que até o extinto culto a Diana, deusa da mitologia greco-romana, pode ser incorporado ao candomblé.
Para completar, Brasiléia é o berço do Santo Daime, religião criada pelo mestre Irineu, um ex-seringueiro e guarda territorial, autor de um ritual que se caracteriza pelo sincretismo de danças de inspiração indígena e africana, militarismo patriótico e catolicismo em torno do consumo de uma bebida alucinógena produzida à base de um cipó consumido há milênios pelos índios da região amazônica.
Talvez pela precariedade, pelo personalismo do culto e por sua criação relativamente recente, assim como pelo número restrito de adeptos, o Vale do Amanhecer e o Santo Daime são, além de religiões por assim dizer tipicamente brasileiras, manifestações místicas que expõem de uma forma despudorada o quanto há de vontade de materialização dos desejos e fantasias de seus criadores e administradores na concepção dos ritos seguidos daí em diante por uma legião de crentes; o quanto há de uma espécie de pacto sexual na origem de toda religião. Afinal, os ritos também são modos de dar vazão aos desejos humanos e de impô-los em seguida a outros homens cuja imaginação talvez seja menos urgente do que a tendência a se submeter à imaginação alheia.
Onde uns constróem uma cidade, outros criam uma religião. Mais de uma coisa une o Vale do Amanhecer à construção de Brasília. Tia Neiva, uma ex-caminhoneira que testemunhou o espetáculo da construção da capital, também decidiu materializar o seu mundo imaginário, onde mulheres em trajes de fadas, vestais, princesas e rainhas e homens vestidos de guerreiros bíblicos e cavaleiros medievais conversam na rua como pacatos moradores de uma cidade do interior a caminho de cerimônias em torno de um lago artificial, entre pirâmides e altares, ou no interior de um templo em que há de tudo, de passes de inspiração espírita ao culto à imagem do sarcófago de um faraó egípcio. A impressão é de um parque de diversões mambembe, uma festa à fantasia no interior.
No Vale do Amanhecer, se hoje estou mais propenso a assumir as "culpas das minhas vidas passadas", uso uma vestimenta que corresponde ao meu papel. Assumo todo um ritual de expiação pública. O Vale do Amanhecer é um enorme teatro em que cada um assume, dentro das opções oferecidas pela seita, o papel que mais lhe corresponde. O menor vestígio de humor ou ironia seria suficiente para fazer desmoronar esse castelo de cartas socialmente consentido e representado.
A diferença em relação ao Daime é a bebida. O rito é um pretexto para tomá-la e, mais do que isso, uma forma de direcionar, circunscrever e potencializar os seus efeitos. O Daime recorre a um artifício mais imediato e potente para transformar a singeleza tosca da invenção do culto numa experiência sensorial de euforia e transe coletivos. Não há o menor risco de que a cerimônia seja interrompida ou estragada pelo humor e pela ironia individuais. É o princípio do ritual coletivo.
Uma parte do grupo e eu decidimos tomar o Daime no Alto Santo, centro mantido, com mão de ferro e o rigor da ortodoxia, pela viúva do mestre Irineu, nos arredores de Rio Branco. De início, tudo parecia não passar de uma cerimônia insossa, regrada por fetiches patrióticos e escolares, em que homens e mulheres fardados, em grupos separados, repetiam à exaustão os mesmos passos da marcha, enquanto entoavam os versos simplórios de um hinário recebido sob o transe pelo mestre e chacoalhavam um maracá nas mãos.
Três doses da bebida depois, eu já via o ritual com outros olhos. Tudo tinha ganhado um sentido feérico, embora nada tivesse mudado e os adeptos continuassem num ritmo capaz de fazer até Philip Glass pedir para trocar de disco.
A bebida induz a vontade de participar e de se submeter ao rito coletivo, um sentimento de euforia em que tudo passa a fazer sentido, até a repetição e os versos mais prosaicos. Basta repeti-los. Me lembro de ter anotado um deles ("Eu vivo neste mundo") na alegria besta do calor da hora. Continuo olhando para ele, tentando arrancar a revelação que teria ouvido naquelas palavras. Em vão. Agora, aliviado pela volta do humor e da ironia, a frase não me diz muita coisa além de me pedir para arrematá-la, afirmando satisfeito: "E não faço parte dele".


Texto Anterior: Ilustrada: Morre a atriz francesa Madeleine Robinson
Próximo Texto: Artes plásticas: Pintura se fortalece pela coincidência
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.