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BERNARDO CARVALHO
Eu vivo neste mundo
O Teatro da Vertigem estava determinado a não
tratar mais de temas religiosos
quando decidiu embarcar numa
viagem de pesquisa por três lugares (Brasilândia, periferia de São
Paulo; Brasília, Distrito Federal; e
Brasiléia, na fronteira do Acre
com a Bolívia) unidos pelo mesmo radical.
Em 12 anos de existência, o grupo criou três espetáculos ("O Paraíso Perdido", "O Livro de Jó" e
"Apocalipse 1,11") que ficaram conhecidos como "trilogia bíblica".
O novo projeto, para o qual fui
convidado como dramaturgo, teria que ser laico. O grupo só não
contava com a lógica peculiar que
garante uma igreja evangélica a
cada esquina de Brasilândia e em
cada povoado, por menor que seja, ao longo dos mais de 4.000 quilômetros de estrada percorridos,
em julho, entre São Paulo e o
Acre. A mesma lógica que deve
explicar o fato igualmente peculiar de haver um crucifixo coroando o plenário da Câmara no
Congresso Nacional, à imagem de
uma igreja.
E embora soubesse de tudo isso,
o Teatro da Vertigem não podia
imaginar a que ponto Brasília é
uma Disneylândia mística, celeiro das seitas mais ecléticas, que
vão do alucinante Vale do Amanhecer a outras manifestações
originais, em que até o extinto
culto a Diana, deusa da mitologia
greco-romana, pode ser incorporado ao candomblé.
Para completar, Brasiléia é o
berço do Santo Daime, religião
criada pelo mestre Irineu, um ex-seringueiro e guarda territorial,
autor de um ritual que se caracteriza pelo sincretismo de danças de
inspiração indígena e africana,
militarismo patriótico e catolicismo em torno do consumo de uma
bebida alucinógena produzida à
base de um cipó consumido há
milênios pelos índios da região
amazônica.
Talvez pela precariedade, pelo
personalismo do culto e por sua
criação relativamente recente, assim como pelo número restrito de
adeptos, o Vale do Amanhecer e o
Santo Daime são, além de religiões por assim dizer tipicamente
brasileiras, manifestações místicas que expõem de uma forma
despudorada o quanto há de vontade de materialização dos desejos e fantasias de seus criadores e
administradores na concepção
dos ritos seguidos daí em diante
por uma legião de crentes; o
quanto há de uma espécie de pacto sexual na origem de toda religião. Afinal, os ritos também são
modos de dar vazão aos desejos
humanos e de impô-los em seguida a outros homens cuja imaginação talvez seja menos urgente
do que a tendência a se submeter
à imaginação alheia.
Onde uns constróem uma cidade, outros criam uma religião.
Mais de uma coisa une o Vale do
Amanhecer à construção de Brasília. Tia Neiva, uma ex-caminhoneira que testemunhou o espetáculo da construção da capital, também decidiu materializar
o seu mundo imaginário, onde
mulheres em trajes de fadas, vestais, princesas e rainhas e homens
vestidos de guerreiros bíblicos e
cavaleiros medievais conversam
na rua como pacatos moradores
de uma cidade do interior a caminho de cerimônias em torno de
um lago artificial, entre pirâmides e altares, ou no interior de um
templo em que há de tudo, de passes de inspiração espírita ao culto
à imagem do sarcófago de um faraó egípcio. A impressão é de um
parque de diversões mambembe,
uma festa à fantasia no interior.
No Vale do Amanhecer, se hoje
estou mais propenso a assumir as
"culpas das minhas vidas passadas", uso uma vestimenta que
corresponde ao meu papel. Assumo todo um ritual de expiação
pública. O Vale do Amanhecer é
um enorme teatro em que cada
um assume, dentro das opções
oferecidas pela seita, o papel que
mais lhe corresponde. O menor
vestígio de humor ou ironia seria
suficiente para fazer desmoronar
esse castelo de cartas socialmente
consentido e representado.
A diferença em relação ao Daime é a bebida. O rito é um pretexto para tomá-la e, mais do que isso, uma forma de direcionar, circunscrever e potencializar os seus
efeitos. O Daime recorre a um artifício mais imediato e potente
para transformar a singeleza tosca da invenção do culto numa experiência sensorial de euforia e
transe coletivos. Não há o menor
risco de que a cerimônia seja interrompida ou estragada pelo humor e pela ironia individuais. É o
princípio do ritual coletivo.
Uma parte do grupo e eu decidimos tomar o Daime no Alto Santo, centro mantido, com mão de
ferro e o rigor da ortodoxia, pela
viúva do mestre Irineu, nos arredores de Rio Branco. De início, tudo parecia não passar de uma cerimônia insossa, regrada por fetiches patrióticos e escolares, em
que homens e mulheres fardados,
em grupos separados, repetiam à
exaustão os mesmos passos da
marcha, enquanto entoavam os
versos simplórios de um hinário
recebido sob o transe pelo mestre
e chacoalhavam um maracá nas
mãos.
Três doses da bebida depois, eu
já via o ritual com outros olhos.
Tudo tinha ganhado um sentido
feérico, embora nada tivesse mudado e os adeptos continuassem
num ritmo capaz de fazer até Philip Glass pedir para trocar de disco.
A bebida induz a vontade de
participar e de se submeter ao rito
coletivo, um sentimento de euforia em que tudo passa a fazer sentido, até a repetição e os versos
mais prosaicos. Basta repeti-los.
Me lembro de ter anotado um deles ("Eu vivo neste mundo") na
alegria besta do calor da hora.
Continuo olhando para ele, tentando arrancar a revelação que
teria ouvido naquelas palavras.
Em vão. Agora, aliviado pela volta do humor e da ironia, a frase
não me diz muita coisa além de
me pedir para arrematá-la, afirmando satisfeito: "E não faço parte dele".
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