São Paulo, domingo, 03 de agosto de 2008

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ARTIGO

Retrospectiva de Duchamp é algo muitíssimo absurdo

Encenador critica mostra em cartaz no MAM de réplicas do artista francês, "o maior revolucionário de todos os tempos'

GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Está em cartaz no Museu de Arte Moderna, em São Paulo, uma retrospectiva de Marcel Duchamp. A simples idéia de uma retrospectiva para Duchamp teria sido, no mínimo, algo impensável ou risível quando ele rompeu com tudo, com a caretice de tudo, com o chamado "bonitismo" da arte no início do século 20. Foi aí que começou o nosso "desastre". Duchamp, Freud e alguns outros são os culpados pelos nossos fracassos. Mas explico: são os nossos grandes heróis. Quem destrói para construir é aquele que consegue transformar o mundo num abrir e fechar de olhos e deixar todo mundo de pé, plantado em seu próprio mijo, sem ter o que dizer. Não à toa o urinol de Duchamp foi um dos primeiros ready-mades, um combate contra a arte artesanal, a pintura e a escultura tradicionais. Retrospectiva de Duchamp é muitíssimo absurda, ainda por cima réplicas dos ready-mades. Haroldo de Campos foi mais longe, já que era um Duchamp também, Du Champos! Construiu palavras de concreto e cruzou a onomatopéia de Joyce com o dadaísta francês. A arte de vanguarda berra em uníssono sempre a mesma coisa: nosso pacto é o futuro, passado é excremento! Retrospectiva, portanto, não nos traz nem lágrima de cristal japonês. E por quê? Porque, quando Duchamp cancelou sua parceria com Tristan (sem Isolda) Tzara, deixou Paris e nova-iorquinizou-se, o movimento em si de deixar o velho pelo novo já tinha um significado. Falo de 1911 ou algo assim. "Achar" objetos na rua e juntá-los era um humor que os americanos não tinham. Só vieram a ter nos anos 60 com Andy Warhol. Então, certo dia, Duchamp cancelou sua exposição na Pace Gallery, em Manhattan, e falou: "Retirem todos os quadros, apareço aí mais tarde com objetos novos". E somou ao já famoso "Nu Descendo a Escada" (um dos mais escandalosamente lindos tributos à pintura em movimento) seu maior e mais conhecido quadro-não-quadro, "o pai e a mãe" disso que chamamos hoje de instalação/manifesto: "A Roda de Bicicleta". Essa roda foi assim: nesse mesmo dia em que cancelava sua exposição na Pace, Duchamp andava pelo Bowery, perto da Houston Street. De um lado da rua tinha uma roda de bicicleta jogada fora. Do outro, um desses bancos de madeira de bar! Ele GRAMPEOU, tacou a roda em cima do banco e levou o treco para a Pace! Esse foi o maior revolucionário de todos os tempos, em qualquer contexto, em qualquer arte (sem ele não teríamos John Cage na música nem Merce Cunningham na dança etc.). É um saco ter que descrever Duchamp! A melhor maneira e a mais triste de representar uma retrospectiva foi desenhada por Saul Steinberg. O cartum é assim: um coelho olhando para o oeste está sentado em cima de uma tartaruga que caminha lentamente para o leste. Duchamp foi um dos primeiros enormes iconoclastas. Com humor. Quebrou o vidro? Deixa lá, quebrado. O acaso é ótimo!

Rasteira maior
O movimento dadaísta (não os surrealistas caretas e marqueteiros!), o iconoclástico, o desconstrutivista, o atonal, o dodecafônico, o serialista, o abstrato, o abstrato-expressionista, o minimalista, enfim, tudo isso visa a uma só coisa: colocar a arte debaixo da lente do microscópio, autopsiá-la; dissecar se as verdades e mentiras dos séculos anteriores de música e pintura e iluminismo e renascentismo, anos e anos de arrotismo de tantos e tantos Rembrandts, Velázquez, Beethovens, Wagners e outros porcos e Hegels e Kants e os tantos Goethes, ver se eles faziam realmente sentido na era pós-Freud, na era pós-industrializada. A arte desse vanguardista foi a maior de todas as rasteiras. E no que deu? Estamos na mesma. Aliás, estamos mais caretas. Estamos numa era pré-Duchamp, porque hoje o olhamos como se ele estivesse no nosso passado, e toda essa porcaria pseudo-inovadora (salvo alguns, óbvio, como Kiefer, Beuys, Tunga, Warhol, Damien Hirst e outros poucos) ainda está naquela de "pensar a arte" séria, serialista. Voltamos ao quadrinho ou quadrão, ao muralista Siqueiros, ou ao medíocre Portinari, ou ao idiota do Henry Moore, ou às instalações auto-indulgentes. E o povo, ignorante como sempre, se concentra ali na estátua dos retirantes no Ibirapuera, a metros, meio quilômetro da retrospectiva de Duchamp, sem nem sequer saber o que foi tudo aquilo, se o ovo de Colombo ficou em pé ou não, ou se havia ovo de fato. A Arte está MORTA, sim (moribunda, pelo menos). E faz anos que fazemos teatrinho de representação infantil em torno de seu funeral para não perdermos emprego. Não passamos é de canastrões de última categoria, com a azeitona na ponta do esôfago, segura ali por algum Nexium, Plexium, Sexium ou antiácido. Afinal, antigamente as pessoas tomavam ácido. Hoje, só tomam antiácido.

GERALD THOMAS é diretor teatral



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