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LIVROS
ROMANCE
Chega às livrarias o romance mais ambicioso de Vladimir Nabokov
"Ada ou Ardor" usa subversão e nonsense em crônica familiar
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
"Ada ou Ardor", segundo
consta, é o romance mais
ambicioso do escritor americano
de origem russa Vladimir Nabokov (1899-1977). Também se o
considera uma de suas três ficções
mais importantes, ao lado de "Lolita" e "Fogo Pálido". A ambição
tem ligação com as inúmeras referências à, em geral, alta cultura livresca, cultural e artística. Não há
um só parágrafo em que o leitor
inteligente não se depare com
uma ou duas piscadelas relativas
a, por exemplo, Freud, Flaubert,
Proust, Braque, "Alice no País das
Maravilhas", "Doutor Jivago".
O livro começa com uma suposta citação de Tolstói: "Todas as famílias felizes são mais ou menos
diferentes; todas as famílias infelizes são mais ou menos semelhantes". Inverte-se aqui a ordem da
frase de "Ana Karênina", segundo
a qual cada família infeliz é que é
infeliz a seu próprio modo. Além
disso, como diz o próprio narrador, a afirmação tem pouca ou
nenhuma relação com a narrativa. A linha utilizada por Nabokov
é a da subversão, do toque cômico, do nonsense. Em uma palavra,
da paródia.
Por exemplo: "bric-à-brac" se
torna "bric-à-Braques"; John Milton e Abraham Lincoln se fundem num único Abraham Milton;
"Doutor Jivago" se torna "Les
Amours du Dr. Mertvago" (jogo
de palavras com "jiv", "vivo" em
russo, e "mert", "morto"). "Lolita" pode ser tanto uma cidade do
Texas quanto uma saia que "vestia uma ciganinha andaluza do
romance de Osberg".
Percebe-se que o romance, independentemente da matéria de
que trate, é em grande parte um
comentário burlesco a toda história da ficção e, de quebra, a toda
história. O próprio espaço é subvertido e, com ele, tudo o mais
que vai dentro. Em vez da Terra,
temos a Antiterra. Nesse estranho
universo a Rússia ainda pode estar ligada aos EUA e Boston estar
próxima das estepes eslavas.
Tanta invenção irritou alguns
críticos, como John Updike, que
reclama de "falta de experiência
humana reconhecível" no livro.
Essa experiência, porém, é fácil de
resumir. Os primos Ada e Van
apaixonam-se quando o jovem
passa uma temporada na casa de
campo dos tios. Mesmo descobrindo depois que são irmãos,
não deixam de consumar seu
amor. Mas a infidelidade de Ada,
somada a pressões parentais, acaba separando-os por um bom
tempo, mas não para sempre. A
narrativa percorre oito décadas
da história da Antiterra.
Nenhum dos personagens age
de modo muito verossímil. Ada e
Van, com 12 e 14 anos, portam-se
como adultos sofisticados. A mãe
de Ada é uma improvável aristocrata e atriz em pleno século 19.
Na verdade, todos parecem agir
como se forças maiores regidas
pelo artifício estético ou por exigências mitopoéticas os guiassem. Em entrevista Nabokov afirmou ter escolhido o tema do incesto porque apreciava o som "bl"
em "siblings, bloom, blue, bliss,
sable" (irmãos, floração, azul, glória, zibelina).
Ada adora insetos, principalmente larvas e lagartas. Coleciona
bichos cheios de protuberâncias e
filamentos. Já as borboletas saídas
da crisálida são preparadas e empaladas num imenso painel. É
uma excelente metáfora para o
romance. A vida vale enquanto é
subterrânea, amorfa, passível de
observação e isenta de conflito.
Assim que sucede a metamorfose,
deixa de servir como matéria viva.
Apenas a boniteza de seu cadáver
formolizado pode emular o artifício larval. Tem razão o Updike.
Nabokov fala de coisas espectrais.
Ou de coisas mortas.
Ada ou Ardor: Crônica de uma Família
Autor: Vladimir Nabokov
Tradução: Jorio Dauster
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 58 (472 págs.)
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