São Paulo, sexta-feira, 03 de setembro de 2010

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CARLOS HEITOR CONY

Pontos para mais ou para menos


Essa turma assiste ao debate como a uma partida de futebol, com o placar fornecido pelas pesquisas


ALÉM DAS ENCHENTES na China, do menisco avariado do Kaká, do massacre na fronteira do México com os Estados Unidos e de mais uma prisão da Paris Hilton flagrada com cocaína, o que há de novidade pelos nossos pagos é o debate político, que começa a entrar em alta. Antigamente, e parece que desde que os gregos inventaram o cavalo de Troia e a democracia, as discussões políticas e eleitorais se faziam em ruas e praças. Um de nossos vates, o baiano Castro Alves, chegou a poetizar a respeito, dizendo que a praça é do povo como o céu é do condor.
Acontece que agora, com TV e as novas mídias, Twitter, Facebook e afins, o debate político invade não só a nossa casa, como o trabalho, o lazer, a decantada privacidade -termo que abomino porque me lembra outra coisa, que também dá ao cidadão o direito de ficar sozinho consigo mesmo.
Lá em Pompeia, naquelas ruínas cobertas pelo fogo e pelas cinzas do Vesúvio, os sábios destinavam um lugar específico para o debate político, justamente o "comicium" -praça retangular, ampla, na qual os cidadãos podiam falar dos temas da cidade e da sociedade. Ia lá quem queria.
Aliás, o nome "comitium" gerou a palavra comício -que designa mais ou menos a mesma coisa, só que as cidades deixaram de ter um sítio específico para tal espécie de reunião. Em Londres há um canto no Hyde Park onde se pode fazer o mesmo, mas é um hobby, entre outros que os ingleses cultivam.
Vai daí, das praças e ruas, o debate político tornou-se eletrônico e entra pela nossa casa adentro. Sei que a prática é salutar por ser democrática, distribui tanto quanto possível oportunidades a todos os candidatos e, teoricamente, melhor esclarece os eleitores. Se houve uma medida odiosa, durante o regime militar, além da tortura e da repressão, foi a lei que levava o nome de um ex-ministro e que, disciplinando a discussão política pela TV, acabou por eliminá-la.
Temos agora uma série de debates e o horário eleitoral gratuito, onde desfilam os candidatos que, de uma forma ou outra, pretendem nos transportar para a idade de ouro cantada por Ovídio, também poeta como Castro Alves. Já tivemos alguns debates e outros estão a caminho. Mau cidadão em exercício, não me dei ao respeito de assisti-los, embora, por motivos profissionais, devesse fazê-lo não na qualidade de eleitor, função da qual me aposentei por limite de idade, mas como jornalista que tem por obrigação estar minimamente informado.
Decididamente, é um saco cívico que me abstenho de carregar. Começa que tais debates estão marcados para horários tardos, e algumas vezes, sobretudo na reta final da campanha, estendem-se madrugada adentro.
Ora, bolas: considero isso uma falta de respeito a todos os que trabalham. O argumento dado para programar o esclarecimento para o fim da noite é que a grande faixa do povo, que consome a fatia nobre da programação, não pode ficar sem o pão das novelas e o circo dos musicais e outras amenidades.
Só depois que essa turma vai dormir, esbodegada pelas emoções do drama em que o filho não sabe de quem é filho e a mãe nem sabe quem é o pai, é que se abre espaço para o debate político. Trocando em miúdos: 80% da população já está dormindo, justamente aquela parte que mais necessita da discussão política.
A partir de certa hora, só empresários, executivos, artistas e desocupados em geral estão aptos a consumir debates que debatem aquilo que todos debatem, desde o trem-bala ao uso do urânio enriquecido a 20% e das células-tronco, incluindo o desmatamento da Amazônia. Essa faixa da população já tem opiniões formadas e firmadas a respeito de seus candidatos, de seus partidos, dispõe de suas próprias ideias cívicas e ideológicas. Dificilmente muda de opinião e quando muda, é que se habituou aos programas de auditório em que se escolhe quem vai para o trono.
Essa turma assiste ao debate como a uma partida de futebol, com as idas e vindas do placar fornecido pelas pesquisas. Mesmo que o adversário ganhe, não muda de torcida. Isso, afinal, é um bem.


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