São Paulo, sábado, 03 de outubro de 2009

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LIVROS

Crítica/"Cidade de Quartzo"

Obra vê utopia e distopia do capitalismo em Los Angeles

Livro essencial toma cidade como lócus para a explosiva situação urbana

GUILHERME WISNIK
ESPECIAL PARA A FOLHA

Acaba de ser relançado em português, pela editora Boitempo, o volume "Cidade de Quartzo: Escavando o Futuro em Los Angeles", do historiador marxista norte-americano Mike Davis, também autor de "Planeta Favela" (2006).
Escrito em 1990, o livro é obra seminal para a economia urbana, formulando de modo pioneiro e original o quadro de abrupta transformação das cidades no capitalismo tardio, marcado pela escalada da exclusão social, pelo apartheid espacial e pelo aumento da violência. Características essas que foram combatidas ou mascaradas por projetos de revitalização higienista que procuraram converter conflituosos centros de cidades em lugares pacificados pelo entretenimento e o consumo.
Premonitório, "Cidade de Quartzo" toma a cidade de Los Angeles como um privilegiado lócus da explosiva situação urbana contemporânea. Cidade desenraizada e formada originalmente por imigrantes vindos do Ocidente e do Oriente, Los Angeles foi se tornando o símbolo de uma urbanidade difusa, dominada por vias expressas, shopping centers, condomínios suburbanos de baixa densidade e fortemente vigiados, e uma ausência quase total de espaços públicos -tudo isso como que quintessencializado no poder de sua indústria cultural: Hollywood.

Análise ambivalente
Noutras palavras, a cidade aparece como o lugar arquetípico da "subordinação passiva das intelligentsias industrializadas ao programa do capital", escreve Davis. Embora seja também um solo fértil para o surgimento de algumas das mais agudas críticas à cultura do capitalismo no século 20: a literatura e o cinema noir.
Em síntese, na análise ambivalente de Mike Davis, Los Angeles desempenha "o duplo papel de utopia e de distopia para o capitalismo avançado", daí o seu interesse. Dada a sua história turbulenta e singular, Los Angeles pode ser vista como uma espécie de câmera de decantação antecipada dos conflitos mundiais atuais brotando dentro dos Estados Unidos.
Marcada por violentos conflitos raciais e sociais (como a revolta de Watts, em 1965, e a de 1992, que "Cidade de Quartzo" de certo modo previra; leia mais ao lado), a cidade foi se transformando no palco de uma não nomeada "guerra fria urbana", opondo brutalmente as "células fortificadas" da sociedade afluente e os "lugares de terror" em que a polícia guerreia contra o pobre criminalizado: os guetos.

Paranoia urbana
Como mostra Davis, a crescente paranoia da segurança urbana alimentou, ali, uma destruição programada dos seus espaços públicos, fazendo coincidir a ascensão dos serviços de segurança privada com a privatização de ruas, praças, parques e praias, e a demolição de equipamentos públicos básicos, como banheiros. O que fez com que a cidade fosse se caracterizando progressivamente como um conjunto esparso de fortalezas vigiadas, separadas por uma massa urbana amorfa que se estende infinitamente pelo território, consumindo-o.
Paradoxalmente, a cidade que se afirmou como o sonho da mobilidade individual (a realização espacial da livre iniciativa) vive hoje o pesadelo do encarceramento coletivo. E, o que é pior, espalhando o seu modelo pelo mundo.

GUILHERME WISNIK, crítico de arquitetura, é autor de "Lucio Costa" (Cosac Naify) e "Estado Crítico" (Publifolha)


CIDADE DE QUARTZO - 0 ESCAVANDO O FUTURO EM0 LOS ANGELES

Autor: Mike Davis
Tradução: Renato Aguiar e Marco Rocha
Editora: Boitempo
Quanto: R$ 66 (432 págs.)
Avaliação: ótimo




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