|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIVROS
Crítica/"Contemporaneidades"
Autora vai à MPB em análise da cultura do esquecimento
MÁRCIO SELIGMANN-SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Contemporaneidades", de Olgária
Matos, é caracterizado pela autora como coletânea de "miniaturas filosóficas".
Nele há dez artigos e sete resenhas que tratam de temas como a questão da (des)memória
no Brasil, a representação da
violência (de Auschwitz), o papel das universidades, a filosofia da linguagem e da tradução.
Mas o livro também trata de
música popular brasileira.
Mesmo partindo de Adorno, a
autora não hesita diante do
projeto de fazer uma leitura do
país e da filosofia pela MPB.
Assim, o ensaio "Decantando
a República" mostra que, em
vez de história, temos a geografia e os deslocamentos. No Brasil, trata-se de "geografia do lugar nenhum, sem ponto de partida ou de chegada, nos sentimos estrangeiros, estamos
sempre a caminho".
Daí o domínio no país de uma
concepção circular e não linear,
retilínea do tempo, que seria
mais característica da modernidade e se encontra de modo
paradigmático na filosofia hegeliana. A música "Roda-viva",
de Chico Buarque, é usada como exemplo. "Encontros e
Despedidas", de Milton Nascimento, deixa claro como, em
vez da linearidade, dominaria
aqui a temporalidade do acaso.
Um dos ensaios mais inspirados analisa a linguagem de Guimarães Rosa e seu apreço pela
saída do idioma tal como é concretizado na norma cotidiana,
que o reduz à comunicação. Rosa era um exímio "babelizador"
do português: arrancava o idioma de sua tacanha tranquilidade e o abalava com palavras que
inventava ou trazia de outros
idiomas, como o alemão. Nesse
sentido, era adepto da tradição
romântica da tradução, que via
nessa atividade um meio de
construção do próprio como
constante saída de "si mesmo"
e passagem pelo "outro".
Walter Benjamin foi um
marco nessa linhagem e, no
Brasil, como mostra a autora,
as traduções e a ensaística de
Haroldo de Campos devem ser
colocadas ao lado da língua
reinventada por Rosa. Essa
"exofilia" (amor ao outro), na
expressão de Olgária, deve servir de antídoto a todo nacionalismo e ao monolinguismo que
caracteriza todo modo fascista
de pensar.
A partir da leitura
que Olgária faz de Rosa, percebemos como a visão da língua e
da identidade como constante
saída de si também deve servir
para desconstruir as próprias
ideias de "mestiçagem" e de
cultura "híbrida" que projetam
uma pureza nos idiomas e culturas das "metrópoles".
Toda
cultura é híbrida, trata-se de se
assumir (ou não, como ocorre
no fascismo) esse lado precário
e dinâmico da identidade.
Em "História e Memória",
Olgária leva a cabo uma interessante crítica da espacialização e consequente alienação do
tempo, que caracterizariam a
contemporaneidade. O artigo
trata também das atuais guerras de arquivo e de memória.
Nesse sentido, cita uma passagem particularmente feliz de
"Eros e Civilização", de Marcuse: "Esquecer é também perdoar o que não seria perdoado
se a justiça e a liberdade prevalecessem [...]. As feridas que saram com o tempo são também
as que contêm o veneno. Contra essa rendição do tempo, o
reinvestimento da recordação
[...] em seus direitos é uma das
mais nobres tarefas do pensamento". Com tal passagem
-inspirada em Benjamin- Olgária mostra com propriedade
por que a cultura do esquecimento deve ser criticada.
MÁRCIO SELIGMANN-SILVA é professor de
teoria literária na Unicamp e autor, entre outros,
de "O Local da Diferença" (ed. 34).
CONTEMPORANEIDADES
Autora: Olgária Matos
Editora: Lazuli/Cia. Editora Nacional
Quanto: R$ 28 (216 págs.)
Avaliação: bom
Texto Anterior: Cidade viveu duas grandes revoltas Próximo Texto: Oficina reencontra gênio de Cacilda Becker Índice
|