São Paulo, sábado, 03 de outubro de 2009

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LIVROS

Crítica/"Contemporaneidades"

Autora vai à MPB em análise da cultura do esquecimento

MÁRCIO SELIGMANN-SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Contemporaneidades", de Olgária Matos, é caracterizado pela autora como coletânea de "miniaturas filosóficas". Nele há dez artigos e sete resenhas que tratam de temas como a questão da (des)memória no Brasil, a representação da violência (de Auschwitz), o papel das universidades, a filosofia da linguagem e da tradução. Mas o livro também trata de música popular brasileira. Mesmo partindo de Adorno, a autora não hesita diante do projeto de fazer uma leitura do país e da filosofia pela MPB.
Assim, o ensaio "Decantando a República" mostra que, em vez de história, temos a geografia e os deslocamentos. No Brasil, trata-se de "geografia do lugar nenhum, sem ponto de partida ou de chegada, nos sentimos estrangeiros, estamos sempre a caminho".
Daí o domínio no país de uma concepção circular e não linear, retilínea do tempo, que seria mais característica da modernidade e se encontra de modo paradigmático na filosofia hegeliana. A música "Roda-viva", de Chico Buarque, é usada como exemplo. "Encontros e Despedidas", de Milton Nascimento, deixa claro como, em vez da linearidade, dominaria aqui a temporalidade do acaso.
Um dos ensaios mais inspirados analisa a linguagem de Guimarães Rosa e seu apreço pela saída do idioma tal como é concretizado na norma cotidiana, que o reduz à comunicação. Rosa era um exímio "babelizador" do português: arrancava o idioma de sua tacanha tranquilidade e o abalava com palavras que inventava ou trazia de outros idiomas, como o alemão. Nesse sentido, era adepto da tradição romântica da tradução, que via nessa atividade um meio de construção do próprio como constante saída de "si mesmo" e passagem pelo "outro".
Walter Benjamin foi um marco nessa linhagem e, no Brasil, como mostra a autora, as traduções e a ensaística de Haroldo de Campos devem ser colocadas ao lado da língua reinventada por Rosa. Essa "exofilia" (amor ao outro), na expressão de Olgária, deve servir de antídoto a todo nacionalismo e ao monolinguismo que caracteriza todo modo fascista de pensar.
A partir da leitura que Olgária faz de Rosa, percebemos como a visão da língua e da identidade como constante saída de si também deve servir para desconstruir as próprias ideias de "mestiçagem" e de cultura "híbrida" que projetam uma pureza nos idiomas e culturas das "metrópoles".
Toda cultura é híbrida, trata-se de se assumir (ou não, como ocorre no fascismo) esse lado precário e dinâmico da identidade. Em "História e Memória", Olgária leva a cabo uma interessante crítica da espacialização e consequente alienação do tempo, que caracterizariam a contemporaneidade. O artigo trata também das atuais guerras de arquivo e de memória.
Nesse sentido, cita uma passagem particularmente feliz de "Eros e Civilização", de Marcuse: "Esquecer é também perdoar o que não seria perdoado se a justiça e a liberdade prevalecessem [...]. As feridas que saram com o tempo são também as que contêm o veneno. Contra essa rendição do tempo, o reinvestimento da recordação [...] em seus direitos é uma das mais nobres tarefas do pensamento". Com tal passagem -inspirada em Benjamin- Olgária mostra com propriedade por que a cultura do esquecimento deve ser criticada.

MÁRCIO SELIGMANN-SILVA é professor de teoria literária na Unicamp e autor, entre outros, de "O Local da Diferença" (ed. 34).


CONTEMPORANEIDADES

Autora: Olgária Matos
Editora: Lazuli/Cia. Editora Nacional
Quanto: R$ 28 (216 págs.)
Avaliação: bom




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