São Paulo, sexta, 3 de outubro de 1997.




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Todos nós possuímos nossos arraiais de Canudos

ARIANO SUASSUNA
Em Canudos, a bandeira usada pelo povo era a do Divino Espírito Santo, a bandeira do Brasil real que, a meu ver, é o do povo pobre, negro, índio e mestiço.
É o país que o Brasil oficial, o dos brancos e poderosos, mais uma vez -e como já sucedera em Palmares- iria esmagar e sufocar ali, confrontando-se então, no caso, duas visões opostas de justiça.
Como era de esperar, a justiça dos poderosos esmagou a do povo, e os acontecimentos de Canudos continuam a se repetir no Brasil a cada instante.
Em todos os campos de atividade; diariamente, incessantemente. Quando, no interior, uma milícia de poderosos, governamental ou não, assassina um pobre posseiro e sua família, é o Brasil dos que incendiaram, assolaram ou arrasaram Canudos que está atirando, que está matando o Brasil real, o do Povo. Quando, numa cidade qualquer, a polícia invade e destrói uma favela, é outro dos nossos inumeráveis arraiais de Canudos que está sendo destruído e assolado pelo Brasil oficial.
E temos que, ao mesmo tempo, ampliar e restringir a imagem, para que ela se torne realmente eficaz com expressão do nosso pensamento. Ampliá-la no plano internacional para dizer que, diante de países ricos e poderosos como os Estados Unidos, a Alemanha e a Rússia, o Terceiro Mundo é um imenso arraial de Canudos, pobre e injustiçado.
De modo que, quando os Estados Unidos invadem o Panamá e Granada, ou ameaçam a Líbia; quando a Rússia invade o Afeganistão; quando a França se impõe ao Chad; e quando todos se juntam para esmagar o povo do Iraque, assassinando crianças, velhos e pessoas de todos os tipos com mísseis e outras armas de seus poderosos arsenais, o Panamá, Granada, a Líbia, o Chad e o Iraque são, todos, arraiais de Canudos que estão sendo esmagados ou humilhados.
Mas, para não sermos hipócritas, temos também que restringir a imagem ao âmbito de nossas vidas pessoais, pois, ou reconhecemos as nossas culpas ou nunca começaremos a lutar contra o inferno interior que cada um de nós carrega dentro de si.
Tenhamos então a hombridade de confessar que todos nós, integrantes do Brasil oficial, possuímos também -na cozinha, no jardim, no lavador- nossos arraiais de Canudos.
Por isso, quando, na casa de qualquer um de nós, brasileiros brancos e privilegiados, um casal oprime e explora uma empregada doméstica negra e pobre, é o Brasil oficial que está humilhando o Brasil real e violando a dignidade de seu direito.
Ao falar assim, procuro não ser otimista nem pessimista. Sou apenas esperançoso diante de um futuro que sei difícil, mas não considero impossível.
Por isso concluo afirmando que, no Brasil, a justiça somente será efetiva quando, um dia, se anular essa terrível dilaceração de opostos; quando, afinal, se transformar, por meio de uma fusão, de uma identificação verdadeira e fraterna, a justiça do país oficial segundo a imagem e semelhança do país real. Ou, em palavras mais exatas: quando a justiça do Brasil oficial, pela primeira vez em nossa atormentada história, se tornar expressão perfeita e acabada da justiça do Brasil real.


Ariano Suassuna, 70, é escritor e secretário da Cultura de Pernambuco.



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