São Paulo, terça-feira, 03 de dezembro de 2002

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FERNANDO BONASSI

Peças de inquérito

Depois de cientificada dos fatos apurados no inquérito ora aberto, passou a depoente a ser interrogada pela autoridade, respondendo o seguinte...
QUE exerce a função de prendas domésticas, não possuindo base fixa de ganho. QUE é mãe de sete meninos. QUE por essa razão ganhou o vulgo de "Branca de Neve". QUE tal vulgo nada ter a ver com o uso, comercialização ou guarda de alcalóide obtido através das folhas de coca. QUE seus meninos não são portadores de nanismo de qualquer natureza. QUE vive do que seus meninos lhe trazem e de uma aposentadoria do marido, recém-falecido. QUE os seus meninos trazem diversas coisas para casa. QUE seus meninos chamam "tais coisas" de "presentes". QUE ela desconhece a origem de "tais coisas" e que é falta de educação perguntar sobre o que ganhamos de presente. QUE ela deu educação aos seus meninos. QUE os seus meninos poderiam até se desencaminhar, mas que não seria por falta de educação. QUE todos aqueles que ela chama de "seus meninos" são, na verdade, seus filhos...
Observação: como a depoente se alterasse, a autoridade esclareceu que não se colocava em questão sua (da depoente) capacidade de educar os próprios filhos; em seguida foi solicitado à depoente que usasse o termo "filhos" ao invés de "meninos", para o melhor esclarecimento do inquérito ora aberto.
... QUE o marido morreu de morte natural desconhecida. QUE a depoente não entende disso, mas era a causa consignada no atestado de óbito. QUE o marido nunca foi muito certo da cabeça, mas ficara amarelo, depois marrom, e finalmente caíra duro no quintal. QUE o quintal de sua casa é cimentado. QUE foi duro provar o tempo de serviço do marido. QUE ela gosta de pôr uma cadeira no quintal e ficar imaginando. QUE o seu marido tinha cimentado o quintal. QUE ela imagina muitas coisas. QUE ela até tem vergonha de relatar certas coisas que imagina. QUE as tais coisas que ela imagina não são as "tais coisas" (ou "presentes") que os filhos lhe trazem. QUE vira e mexe passarinhos mortos amanhecem no quintal. QUE pouco antes de sua morte o marido nem tinha mais forças para criar passarinhos. QUE a morte de seu marido não tem nada a ver com o inquérito ora aberto...
Observação: foi solicitado à depoente que mantivesse o foco no inquérito ora aberto, evitando tergiversações.
... QUE ela se vê obrigada a vender parte dos "presentes" para o sustento da casa. QUE esses "presentes" vão de eletrodomésticos à bijuterias...
Observação: foi esclarecido à depoente o significado do termo "tergiversação".
... QUE a depoente afirma não estar tergiversando, se ela entendeu muito bem o que significa o termo. QUE ela tinha entendido muito bem significar "enrolação".
Observação: a autoridade retirou o termo "tergiversação", com o beneplácito da depoente.
... QUE os meni... digo, os filhos, não se ofendem quando ela vende os "presentes"...
Observação: o escrivão pediu autorização para retirar as aspas da palavra "presente", isto é, presente, no que foi atendido pela autoridade.
... QUE eles não se ofendem quando ela vende os tais presentes, pois afinal todos sabiam que "alguma coisa" naquela casa tinha que virar feijão. QUE só Deus sabe o que já virou feijão naquela casa. QUE, de todos os seus filhos, somente o acusado tem uma passagem pela polícia...
Observação: inquirida pela depoente, a autoridade respondeu que sim, o inquérito ora aberto configura "uma passagem".
... QUE, de todos os seus filhos, somente o acusado tem duas passagens pela polícia. QUE ela desconhece o motivo da primeira passagem, pois tivera conhecimento do fato através de terceiros. QUE terceiros metem-se muito na vida dos primeiros e dos segundos por aí...
Observação: foi novamente solicitado à depoente que se ativesse ao inquérito ora aberto.
... QUE esse filho frequentou a escola sim. Que ele dizia que passava de ano, mas era mais como se os anos passassem por ele, porque não conseguia aprender. QUE, por mais que se ensine, em casa sempre se aprende pouco. QUE, por mais que se sofra, a rua é a segunda mãe dos meninos. QUE, por falar em sofrimento, esse filho sempre lhe deu mais dor de cabeça. QUE o olho dele brilhava quando saía na rua. QUE esse brilho era mau sinal numa família pobre. QUE não é a primeira nem a segunda reclamação que ouve a respeito dele. QUE é o quarto filho. QUE a cabeça desse filho é mais certa que a do pai.
QUE tem até vergonha de dizer, mas um dia dormiu com um facão, esperando o retorno do acusado, visando tirar-lhe a vida com tal instrumento perfuro cortante. QUE não quer para outra mãe o que ela passa com esse menino. QUE chorou abraçada ao facão e desistiu da idéia, reconduzindo o instrumento à gaveta de origem. QUE o olho dele brilhando é a "coisa" mais linda do mundo. QUE a vida dela não valeria nada sem aquele miserável.
Observação: inquirida pela depoente, a autoridade respondeu que não, "pensar em matar" não configura crime previsto no Código Penal Brasileiro.
... QUE nunca foi presa ou processada.
Nada mais disse.
Lido e achado conforme, vai devidamente assinado pela autoridade, depoente, testemunhas e por mim, escrivão concursado em nível III, que digitei.


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