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FERNANDO BONASSI
Peças de inquérito
Depois de cientificada dos
fatos apurados no inquérito
ora aberto, passou a depoente a
ser interrogada pela autoridade,
respondendo o seguinte...
QUE exerce a função de prendas domésticas, não possuindo
base fixa de ganho. QUE é mãe de
sete meninos. QUE por essa razão
ganhou o vulgo de "Branca de
Neve". QUE tal vulgo nada ter a
ver com o uso, comercialização ou
guarda de alcalóide obtido através das folhas de coca. QUE seus
meninos não são portadores de
nanismo de qualquer natureza.
QUE vive do que seus meninos lhe
trazem e de uma aposentadoria
do marido, recém-falecido. QUE
os seus meninos trazem diversas
coisas para casa. QUE seus meninos chamam "tais coisas" de
"presentes". QUE ela desconhece
a origem de "tais coisas" e que é
falta de educação perguntar sobre
o que ganhamos de presente.
QUE ela deu educação aos seus
meninos. QUE os seus meninos
poderiam até se desencaminhar,
mas que não seria por falta de
educação. QUE todos aqueles que
ela chama de "seus meninos" são,
na verdade, seus filhos...
Observação: como a depoente se
alterasse, a autoridade esclareceu
que não se colocava em questão
sua (da depoente) capacidade de
educar os próprios filhos; em seguida foi solicitado à depoente
que usasse o termo "filhos" ao invés de "meninos", para o melhor
esclarecimento do inquérito ora
aberto.
... QUE o marido morreu de
morte natural desconhecida.
QUE a depoente não entende disso, mas era a causa consignada
no atestado de óbito. QUE o marido nunca foi muito certo da cabeça, mas ficara amarelo, depois
marrom, e finalmente caíra duro
no quintal. QUE o quintal de sua
casa é cimentado. QUE foi duro
provar o tempo de serviço do marido. QUE ela gosta de pôr uma
cadeira no quintal e ficar imaginando. QUE o seu marido tinha
cimentado o quintal. QUE ela
imagina muitas coisas. QUE ela
até tem vergonha de relatar certas
coisas que imagina. QUE as tais
coisas que ela imagina não são as
"tais coisas" (ou "presentes") que
os filhos lhe trazem. QUE vira e
mexe passarinhos mortos amanhecem no quintal. QUE pouco
antes de sua morte o marido nem
tinha mais forças para criar passarinhos. QUE a morte de seu marido não tem nada a ver com o inquérito ora aberto...
Observação: foi solicitado à depoente que mantivesse o foco no
inquérito ora aberto, evitando
tergiversações.
... QUE ela se vê obrigada a vender parte dos "presentes" para o
sustento da casa. QUE esses "presentes" vão de eletrodomésticos à
bijuterias...
Observação: foi esclarecido à
depoente o significado do termo
"tergiversação".
... QUE a depoente afirma não
estar tergiversando, se ela entendeu muito bem o que significa o
termo. QUE ela tinha entendido
muito bem significar "enrolação".
Observação: a autoridade retirou o termo "tergiversação", com
o beneplácito da depoente.
... QUE os meni... digo, os filhos,
não se ofendem quando ela vende
os "presentes"...
Observação: o escrivão pediu
autorização para retirar as aspas
da palavra "presente", isto é, presente, no que foi atendido pela
autoridade.
... QUE eles não se ofendem
quando ela vende os tais presentes, pois afinal todos sabiam que
"alguma coisa" naquela casa tinha que virar feijão. QUE só Deus
sabe o que já virou feijão naquela
casa. QUE, de todos os seus filhos,
somente o acusado tem uma passagem pela polícia...
Observação: inquirida pela depoente, a autoridade respondeu
que sim, o inquérito ora aberto
configura "uma passagem".
... QUE, de todos os seus filhos,
somente o acusado tem duas passagens pela polícia. QUE ela desconhece o motivo da primeira
passagem, pois tivera conhecimento do fato através de terceiros. QUE terceiros metem-se muito na vida dos primeiros e dos segundos por aí...
Observação: foi novamente solicitado à depoente que se ativesse
ao inquérito ora aberto.
... QUE esse filho frequentou a
escola sim. Que ele dizia que passava de ano, mas era mais como
se os anos passassem por ele, porque não conseguia aprender.
QUE, por mais que se ensine, em
casa sempre se aprende pouco.
QUE, por mais que se sofra, a rua
é a segunda mãe dos meninos.
QUE, por falar em sofrimento, esse filho sempre lhe deu mais dor
de cabeça. QUE o olho dele brilhava quando saía na rua. QUE
esse brilho era mau sinal numa
família pobre. QUE não é a primeira nem a segunda reclamação
que ouve a respeito dele. QUE é o
quarto filho. QUE a cabeça desse
filho é mais certa que a do pai.
QUE tem até vergonha de dizer,
mas um dia dormiu com um facão, esperando o retorno do acusado, visando tirar-lhe a vida
com tal instrumento perfuro cortante. QUE não quer para outra
mãe o que ela passa com esse menino. QUE chorou abraçada ao
facão e desistiu da idéia, reconduzindo o instrumento à gaveta de
origem. QUE o olho dele brilhando é a "coisa" mais linda do mundo. QUE a vida dela não valeria
nada sem aquele miserável.
Observação: inquirida pela depoente, a autoridade respondeu
que não, "pensar em matar" não
configura crime previsto no Código Penal Brasileiro.
... QUE nunca foi presa ou processada.
Nada mais disse.
Lido e achado conforme, vai devidamente assinado pela autoridade, depoente, testemunhas e
por mim, escrivão concursado em
nível III, que digitei.
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