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MÚSICA ERUDITA
E afinal era só uma boneca de olhos de esmalte
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
"É ridículo: ninguém se
apaixona por uma boneca!" Assim dizia um senhor mal-humorado, no intervalo dos
"Contos de Hoffmann", que teve
sua estréia sábado no Municipal.
A frase é uma estultice, mas merece ser citada porque serve involuntariamente de espelho para
verdades antigas da música de Offenbach (1819-80), bem como para a nova e brilhante montagem
de Jorge Takla, com a Orquestra
Experimental de Repertório regida por Jamil Maluf.
É no ato 2 que o poeta Hoffmann se apaixona pela boneca
Olympia -primeiro estágio de
sua educação sentimental, como
recriada engenhosamente no libreto (de Jules Barbier), a partir
de alguns "contos fantásticos" do
próprio escritor romântico alemão. A fonte ali é "O Homem da
Areia", talvez o mais famoso de
todos, depois da leitura de Freud.
O que Freud chamava de "o estranho" se cruza nessa história com a
paixão amorosa, alegorizada no
olho mecânico; já na ópera isso
ganha outro sentido, porque o órgão da paixão é o ouvido.
Estranha verdade: uma sequência de notas pode transformar um
homem. Não só o tenor Fernando
Portari, encarnando Hoffmann
com seu costumeiro brio e fluência. Mas também as 1.500 pessoas
que lotavam o teatro e que se
apaixonaram coletivamente pela
soprano Andrea Ferreira.
A ovação de mais de um minuto, interrompendo a cena depois
da "ária de Olympia", foi um tributo espontâneo e feliz. Ferreira
encontrou um meio-termo raro
entre a rigidez mecânica dos gestos e o canto, que encontra outro
canto dentro de si. Foi cômica e
freudianamente "estranha": só
um surdo não cairia pela boneca.
E os figurinos (Mira Haar) e cenários (Takla), passando da elegância "cool" do verde-Prada às alegrias multicoloridas no balé dos
autômatos, davam concretude ao
que já estava dramatizado na voz
da nossa diva.
A partir daí, ficou mais fácil inclusive aceitar o artificialismo da
encenação. Em particular nos diálogos -em português, contrastando com a música cantada em
francês-, a dramaturgia tende a
cair nos tiques de TV. Mas não é
disso, afinal, que se trata? A própria música de Offenbach não é
feita, em boa parte, de efeitos comuns? E não é isso mesmo que se
vê refletido nos mil espelhos e janelas do cenário? Ou em casa?
A diferença, claro, é que em casa
não tem Cláudia Ricitelli no papel
de Antônia, nem Luciana Bueno
no da cortesã. A primeira já entrou para aquela categoria dos artistas sobre quem não resta mais
qualquer dúvida. Ferreira esbanja
a espoleta divina; Cláudia Ricitelli
é outro tipo de deusa, serena até
no desespero.
Do verde e laranja do ato 2, passou-se aqui ao azul (figurinos de
Attílio Baschera). No ato 4, seria a
vez do vermelho, no cabaré veneziano (figurinos de Elena Montanarini). No meio do vermelho,
um "smoking", o Schlemil do barítono Sebastião Teixeira. E o preto sexy de Giulietta, que a sempre
sexy Luciana Bueno dramatizou
com requintes de malícia. O poeta
parecia um menino, ao lado dessa
loba. E a loba canta!
Nessa hora, nem o bom conselheiro teria alguma chance de diálogo. E olha que era Denise de
Freitas, dobrando de Musa e Niklausse. A meio-soprano é outra
glória nessa constelação de bons
cantores brasileiros reunidos pelo
maestro Maluf, que incluem Lício
Bruno, excelente nas várias versões do diabo (Coppélius, Dr. Miracle etc.), Luciano Botelho (contraparte cômico), Pepes do Valle,
Magda Painno, Paulo Queiroz,
Leonardo Pace e Walter Felippe-Fawcett, sem falar no Coral Lírico.
A ópera é longa, a vida é curta,
mas passam depressa, e a gente
nem sente. Tanta coisa para lembrar: o trio dos óculos, a barcarola
tecno, a ária do fantasma da mãe.
Esplendores e desastres do coração, traduzidos em comédia, mas
também em melodrama, no sentido literal da palavra: teatro da
melodia. E todo mundo, afinal, sai
do teatro de alma leve. Mistérios
da música, comédias do enigma,
que se desfaz e refaz aos olhos de
quem ouve esses bonecos.
Contos de Hoffmann
Onde: Teatro Municipal (pça. Ramos de
Azevedo, s/nš, São Paulo, tel. 0/xx/11/
222-8698)
Quando: hoje e sexta, às 20h; domingo,
às 17h
Quanto: de R$ 15 a R$ 100
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