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Homens-pássaros, discos-asas
da Reportagem Local
Estes são de tempo em que não
valia a máxima "nada se cria, tudo
se copia". Se há muito o que dizer
sobre Secos & Molhados, o mais
bonito talvez seja que vieram para
não imitar ninguém, nem nunca
depois foram imitados por outros
que não fossem eles próprios.
Em dois discos instantâneos, os
S&M pareciam estar no cio, promovendo endoidecidos toda uma
série inédita de cruzamentos.
Meteram rock no tropicalismo
como o próprio movimento não
conseguira; gotejaram poesia
(com "letras" de Fernando Pessoa, Manoel Bandeira, Julio Cortázar...) no pop de massa; contaminaram de "Toada & Rock &
Mambo & Tango & Etc." (é o nome da derradeira música do LP 2,
e no etc. cabe de samba à mais cafona new age) o rock progressivo,
praga da hora no mundo lá fora;
transaram grave e agudo, heterossexualidade e homossexualidade,
travestismo e masculinidade.
"Um verme passeia na lua
cheia", Ney vociferava em "Flores
Astrais", no segundo LP -a lua
cheia era todo aquele mundo chatinho, o verme era o tornado
S&M, simbolista por excelência.
Antes, o primeiro "Secos & Molhados" se forjava tanto como armação para arrebatar telas totalizadoras de TV ("no centro da
própria engrenagem/ inventa a
contramola que resiste", como dizia "Primavera nos Dentes"?) como o disco de saída do armário
-é, sexo- do pop brasileiro.
"Vira, vira, vira homem, vira,
vira lobisomem", debochava "O
Vira". Mais explícitas no arrombo
da sexualidade eram "El Rey",
"Primavera nos Dentes" (prog
rock que culminava em histérico
grito de libertação por Ney) e,
mais que todas, "Assim Assado",
de um velho que morre ao ficar de
costas para o guarda Belo.
"Amor" ("leve, como leve pluma/ muito leve, leve pousa/ na
simples e suave coisa/ suave coisa
nenhuma") era o símbolo: homens-pássaros, flutuavam no céu
de chumbo das impossibilidades.
O carrossel de vaidades cedo abateu o "Vôo" -título da sexta canção do segundo disco-asa, genial e
até hoje mal analisada crônica
sombria da queda anunciada.
Os Ícaros se tingiam de negro,
por entre as "horas vivas" e as
"horas vagas" de "Oh! Mulher Infiel", a morte passando qual calafrio pela brechtiana "Medo Mulato" ("a cabeça tapada"). Tudo
ruía, o sonho fora só um sonho.
Em "O Doce e o Amargo", eram
atiradas ao Sol as culpas (Albert
Camus?); S&M propalavam o escuro, a treva; "sugar o seio da impossibilidade/ até que brote o sangue/ até que surja a alma/ dessa
terra morta/ desse povo triste".
Tragédia anunciada, era só se
consumar. Muito depressa, os
S&M saíram da vida para entrar
na história. Ney e João (e mesmo
Gerson, mais de longe) seguiram
em trabalhos individuais quase
tão grandiosos quanto os dois discos-asas. Mas talvez o sucesso do
verme fosse imperdoável, e nada
deu muito certo -Ney foi se enquadrando, os outros vagaram
perdidos. E das tragédias humanas se fez mais uma das lindas histórias que a música popular tem
proporcionado ao Brasil.
(PAS)
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