São Paulo, Terça-feira, 04 de Janeiro de 2000


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Homens-pássaros, discos-asas

da Reportagem Local

Estes são de tempo em que não valia a máxima "nada se cria, tudo se copia". Se há muito o que dizer sobre Secos & Molhados, o mais bonito talvez seja que vieram para não imitar ninguém, nem nunca depois foram imitados por outros que não fossem eles próprios.
Em dois discos instantâneos, os S&M pareciam estar no cio, promovendo endoidecidos toda uma série inédita de cruzamentos.
Meteram rock no tropicalismo como o próprio movimento não conseguira; gotejaram poesia (com "letras" de Fernando Pessoa, Manoel Bandeira, Julio Cortázar...) no pop de massa; contaminaram de "Toada & Rock & Mambo & Tango & Etc." (é o nome da derradeira música do LP 2, e no etc. cabe de samba à mais cafona new age) o rock progressivo, praga da hora no mundo lá fora; transaram grave e agudo, heterossexualidade e homossexualidade, travestismo e masculinidade.
"Um verme passeia na lua cheia", Ney vociferava em "Flores Astrais", no segundo LP -a lua cheia era todo aquele mundo chatinho, o verme era o tornado S&M, simbolista por excelência.
Antes, o primeiro "Secos & Molhados" se forjava tanto como armação para arrebatar telas totalizadoras de TV ("no centro da própria engrenagem/ inventa a contramola que resiste", como dizia "Primavera nos Dentes"?) como o disco de saída do armário -é, sexo- do pop brasileiro.
"Vira, vira, vira homem, vira, vira lobisomem", debochava "O Vira". Mais explícitas no arrombo da sexualidade eram "El Rey", "Primavera nos Dentes" (prog rock que culminava em histérico grito de libertação por Ney) e, mais que todas, "Assim Assado", de um velho que morre ao ficar de costas para o guarda Belo.
"Amor" ("leve, como leve pluma/ muito leve, leve pousa/ na simples e suave coisa/ suave coisa nenhuma") era o símbolo: homens-pássaros, flutuavam no céu de chumbo das impossibilidades. O carrossel de vaidades cedo abateu o "Vôo" -título da sexta canção do segundo disco-asa, genial e até hoje mal analisada crônica sombria da queda anunciada.
Os Ícaros se tingiam de negro, por entre as "horas vivas" e as "horas vagas" de "Oh! Mulher Infiel", a morte passando qual calafrio pela brechtiana "Medo Mulato" ("a cabeça tapada"). Tudo ruía, o sonho fora só um sonho.
Em "O Doce e o Amargo", eram atiradas ao Sol as culpas (Albert Camus?); S&M propalavam o escuro, a treva; "sugar o seio da impossibilidade/ até que brote o sangue/ até que surja a alma/ dessa terra morta/ desse povo triste".
Tragédia anunciada, era só se consumar. Muito depressa, os S&M saíram da vida para entrar na história. Ney e João (e mesmo Gerson, mais de longe) seguiram em trabalhos individuais quase tão grandiosos quanto os dois discos-asas. Mas talvez o sucesso do verme fosse imperdoável, e nada deu muito certo -Ney foi se enquadrando, os outros vagaram perdidos. E das tragédias humanas se fez mais uma das lindas histórias que a música popular tem proporcionado ao Brasil. (PAS)


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