São Paulo, Terça-feira, 04 de Janeiro de 2000


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Ainda brigados, Secos & Molhados voltam ao CD

Folha Imagem
Usando as maquiagens andróginas que os celebrizaram, João Ricardo, Ney Matogrosso, Marcelo Frias e Gerson Conrad, em 1973



Os dois discos da mítica banda brasileira dos anos 70 são reeditados em um álbum; ex-membros Ney Matogrosso e João Ricardo continuam a descartar qualquer tipo de reencontro


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local

No final do ano em que a banda Secos & Molhados (1971-74) "comemora" o jubileu de prata de sua separação, os integrantes centrais -o português João Ricardo, 50, o mato-grossense Ney Matogrosso, 58, e o paulista Gerson Conrad, 47, então reunidos em São Paulo- assistem, ainda brigados, à reedição das duas obras-primas legadas pelo meteorito.
Sob iniciativa e produção do baterista dos Titãs, Charles Gavin, 39, "Secos & Molhados" (73) e "Secos & Molhados" (74) são reeditados no formato dois LPs em um CD, reconstituindo o cimento gravado da mais extraordinária história de sucesso meteórico que o pop brasileiro testemunhou.
Gavin explica sua iniciativa: "Foi o primeiro rock brasileiro que ouvi, aos 13 anos, e foi muito importante para mim. Eles são muito ignorados, principalmente pela imprensa. Como sou contratado da gravadora (WEA) que detém o catálogo da Continental (selo que lançou os S&M), achei que podia propor esse projeto". Ele diz que a série de recuperação deve continuar com Tom Zé, Heraldo do Monte, Novos Baianos...
O primeiro LP dos S&M saiu do nada -a tiragem inicial era de 1.500 exemplares- para 800 mil cópias vendidas em menos de um ano (a cifra, na época, ameaçava Roberto Carlos), a bordo da explosão de "Sangue Latino", "O Vira" e "Rosa de Hiroshima" e do impacto provocado por visual e gestual sexualmente ambíguos/ agressivos de Ney, João e Gerson.
O estrondo acendeu a fogueira das vaidades, a ponto de o grupo se extinguir dois dias depois do lançamento do segundo LP -que saía com 300 mil cópias pré-vendidas, uma fábula para 74. Não se falam até hoje, e assim reagiram à proposta da Folha de um reencontro para falar do passado.
Ney Matogrosso, vocalista principal dos S&M: "Nunca mais. Apesar de que com Gerson ainda desenvolvi uma relação de amizade, não tenho nenhum interesse nisso, nenhuma vontade. O tempo passou, a vida continuou. Perda de confiança é muito sério".
João Ricardo, compositor, violonista, vocalista, gaitista: "É claro que não. Não tenho amizade com eles, nem gostaria de ter. Não há a menor hipótese, não vejo sentido. É complicado quando as pessoas se separam, é o mesmo que acontece com marido e mulher".
Gerson Conrad, violonista, vocalista: "Eu fui, entre os três, aquele que ficou atento à vida nos últimos 25 anos. Não teria o menor problema. Mas todos sabemos o que eles dois vão responder. Ney, por ter feito uma carreira solo brilhante, se tornou uma pessoa inacessível, jamais me liga. João Ricardo não costumo nem citar".
A pira emocional que culminou no trauma que eles indiretamente descrevem pertence, provavelmente, apenas aos que a viveram, mas a experiência dos S&M pode ser notada como exemplar caso de perdição pelo excesso de sucesso, fama, poder, vaidade.
O conflito de egos já se estabelecia desde o primeiro disco -o baterista Marcelo Frias, músico do conglomerado (como o baixista Willi Verdaguer e o pianista Emilio Carrera) que figurava como um quarto S&M na primeira capa, foi o primeiro a debandar.
Disputas à parte, eles ganhavam o Brasil se fazendo de porta-vozes pós-hippies, advogando tanto a liberação sexual entre um tropicalismo adaptado e o glam rock de David Bowie e Alice Cooper quanto as sombras do regime militar e do rock progressivo dos 70.
Historicamente, foram excepcionais em furar o cerco multinacional, emplacando o estouro na Continental, uma gravadora de capital nacional, mas também em ser quase imediatamente deglutidos pelo poderio da Globo, que os encampou via "Fantástico".
João Ricardo, ideólogo dos S&M, aparecia como uma espécie de dono da bola, controlando o curso do conjunto com seu pai, o crítico teatral João Apolinário, autor das letras de "Amor", "Primavera nos Dentes", "Flores Astrais" e "Angústia" e, no momento final, também empresário da banda.
Gerson (hoje arquiteto) e Ney abandonaram o grupo denunciando o controle de João. Gerson, que vivia atrito também com o suposto monopólio do líder como compositor, define hoje o fim:
"Éramos brilhantes no todo. Só chegamos onde chegamos enquanto tivemos divisão igual de responsabilidades. O processo foi atropelado na relação entre nós, ninguém confiava mais em ninguém. A Continental não fez nada para conter o monstro que havia criado, e fomos vítimas de sacanagens das multinacionais, com propostas nunca concretizadas".
Ele louva o trabalho atual de Charles Gavin. "Como ele, acho um absurdo atropelarem a década de 70, pularem dos Mutantes para os roqueiros dos 80, como sempre acontece. Por mais que doa à história da MPB e por mais que tenha sido meteórica, a banda existiu e foi muito importante."
João, firme em se crer o cerne intelectual dos S&M, hoje reclama o não pagamento de direitos por coletâneas anteriores e é o único a criticar o projeto de reedição. "Gavin só me ligou quando o CD já estava nas lojas. Tenho porque mandei comprar, eles não me deram. Por questão de educação, no mínimo, deviam ter deixado eu dar uma olhada antes."
Continua: "Comercialmente é importante para mim o relançamento, mas foi feito de forma canhestra, torta, tem capa horrível. O som melhorou muito, mas "Assim Assado" tem um violão que eu havia tirado na mixagem. O final de "Vôo" foi cortado abruptamente. Mexeram em "Fala", também. Gavin disse que havia um final bonito e ele deixou correr até o fim. Ora, moral e eticamente ele não pode fazer isso sem me consultar. É um comportamento subdesenvolvido inadmissível".
Mais um pouco: "O encarte diz que o mesmo técnico que gravou os dois discos remixou o CD agora. Está errado, Zorro só gravou o segundo disco".
Ney prefere não se embrenhar nos detalhes técnicos: "Gosto do primeiro disco inteiro. O segundo era mais elaborado, menos popular. Gosto de algumas coisas, de outras não. A gente perdeu a ingenuidade, que era talvez a coisa que mais tocava o público. Acho bom que relancem, tenho orgulho de ter participado, sei o que os Secos & Molhados significaram".
Ainda que os álbuns dos S&M estejam de volta, sua obra posterior continua envolta em névoa.
Os primeiros discos de Ney, os projetos solo de João Ricardo e de Gerson e as intermitentes tentativas de João em reconstruir a banda com novos integrantes mantêm-se fora de catálogo. Em geral divergentes, os três se unem, enfim, numa só opinião: a de que o Brasil maltrata a memória turbulenta dos Secos & Molhados.


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