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LITERATURA
Carpentier, pioneiro da vertente que retratou a América Latina com escritos fantásticos, nascia há cem anos
Realismo mágico driblou censura com humor
MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA
Há cem anos, em 26 de dezembro de 1904 nascia em
Havana um dos mais importantes
escritores latino-americanos, Alejo Carpentier. Filho de um arquiteto francês e de uma musicista
russa, Carpentier teve uma formação sofisticada, inclusive com
passagens por colégios europeus.
Ainda na juventude, contudo,
revelou-se como rebelde, tendo
sido inclusive preso na Cidade do
México por participar de uma
manifestação estudantil contra o
governo. Foi na prisão que começou a escrever o romance "Ecué
Yamba O", cujo título já indica a
tendência de sua literatura: trata-se, segundo o próprio autor, de
uma narrativa afro-cubana. Carpentier estava em busca das raízes
culturais da América Latina. Mas
o que o tornou realmente conhecido foi o realismo mágico.
A expressão já existia; havia sido
criada em 1925 pelo crítico alemão Franz Roh para designar a
arte pós-expressionista. À época,
muitos escritores e artistas latino-americanos viviam na Europa e
eram naturalmente influenciados
pelo surrealismo e pela valorização das fantasias nascidas no inconsciente -não podemos esquecer que a psicanálise freudiana estava em ascensão. Voltando
a seus países, contudo, davam-se
conta de que procuravam longe o
que estava perto; em matéria de
exótico e de fantasia, a América
Latina era um celeiro inesgotável.
Nisso Carpentier foi pioneiro.
Como afirmou num depoimento de 1933: "Sentia um ardente desejo de expressar a realidade latino-americana, mas ainda não sabia como fazê-lo. Durante muito
tempo li tudo o que podia sobre a
América, desde as cartas de Colombo, passando pelo Inca Garcilaso, até os autores do século 18."
Lembra Cortés que, numa carta
ao rei de Espanha, preferia não ter
palavras para descrever a América: "Dei-me conta de que essas
eram as palavras que tínhamos de
achar".
Ajudou-o muito nessa busca as
exaustivas pesquisas realizadas
em museus, bibliotecas e arquivos, mas, sobretudo, a viagem que
realizou (1943) ao Haiti, ao Alto
Orinoco e à Amazônia, em companhia do ator francês Louis Jouvet. Foi um rito de passagem, um
mergulho na rica cultura indígena, com suas lendas e seus mitos.
Na volta, escreve "O Reino deste
Mundo" (1949), com um prefácio
que discute o real maravilhoso,
expressão equivalente a realismo
mágico ou realismo fantástico.
No ensaio "Acerca do Real-Maravilhoso Americano" (1964), que
completa o prefácio de 1949, diz
Carpentier: "A América é o único
continente onde diferentes eras
coexistem", onde os avanços tecnológicos da modernidade convivem com o primitivo. Esta situação configura o choque cultural
do qual nasce a fantasia que alimentará a nova vertente literária.
Em termos de literatura o fantasioso não chega a ser novidade; já
estava presente em Rabelais, em
Sterne, em Hoffmann. Mas o realismo mágico latino-americano
tem características próprias. Ele
não apenas funde a narrativa realista com elementos fantásticos;
vai mais além, sobretudo por causa do quadro político, econômico
e social vigente na América Latina
dos anos 60 e 70. É então que o
atraso da região fica mais evidente, que os movimentos reinvindicatórios crescem e é o momento
também em que ditaduras militares tomam o poder em quase todos os países: uma decorrência da
Guerra Fria que estava então em
seu auge e da revolução cubana
vista como ameaça pelos setores
conservadores. E é então que Miguel Ángel Asturias, Carlos Fuentes, Julio Cortázar, Mario Vargas
Llosa e Gabriel García Márquez
de "Cem Anos de Solidão" (1967)
e "O Outono do Patriarca" (1975),
vão chamar a atenção do público
e consolidar o gênero, que será
também representado por autores europeus como Italo Calvino,
Günter Grass e Salman Rushdie.
Mas quais as características do
realismo mágico? Em que se diferencia de outros tipos de literatura fantasiosa? A grande característica é o humor, o mesmo humor
que encontramos no Carnaval
brasileiro, associado à ironia, esta
instrumento de protesto: afinal, o
realismo mágico era a maneira de
driblar a não muito inteligente
censura dos países da América
Latina. Ironia em geral implica
distanciamento, e alguns dos autores de fato pertenciam à elite,
mas isso não impedia que se identificassem, como o faz García
Márquez, com o sofrimento do
povo. Uma outra característica
inclui-se na "suspension of disbelief", na renúncia à descrença, de
que falava Coleridge como pré-condição para entrada no universo literário: os escritores falam de
coisas fantásticas como se tivessem acontecido na realidade. Finalmente, e utilizando a concepção mítica do universo, o tempo
freqüentemente é caracterizado
como cíclicom, em vez de linear:
as coisas tendem a se repetir (e, de
novo, as recorrentes ditaduras
eram um bom modelo para isso).
Quarenta anos depois do seminal texto de Carpentier, o que ficou do realismo mágico? Esta é
uma pergunta que faz minha geração de escritores, fortemente influenciada por essa forma narrativa. E a resposta é óbvia: ficou muito pouco. O próprio García Márquez abandonou o realismo mágico, entregue à elaboração de
suas memórias. Não deixou a ficção; mas sua primeira novela em
dez anos, "Memorias de Mis Putas Tristes" (de novo a alusão à
memória), claramente inspirado
por "A Casa das Belas Adormecidas", do japonês Yasunari Kawabata, fala de um ancião que resiste
à velhice e que se sente rejuvenescer graças a uma impossível e platônica relação com uma adolescente, um tema que Goethe poderia abordar. Ou seja, o realismo
mágico, como tantas outras correntes literárias, pertence à história. Isso não impede que seja lido
com enorme deleite e emoção por
milhões de pessoas em todo o
mundo. O realismo mágico não
morreu: ficou encantado.
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