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CONTARDO CALLIGARIS
"Em Direção ao Sul"
A desigualdade produz, nas elites, a fantasia de estar num harém de corpos escravos
NO FIM de semana passado,
São Paulo estava deserta.
Nos faróis, até a turma habitual de pedintes, saltimbancos e
vendedores ambulantes era reduzida ao mínimo.
Na sexta à noite, mostrando a cidade a um turista europeu (meu conhecido), parei na esquina da Estados Unidos com a Nove de Julho.
Uma moça, muito bonita e habilidosa, fez seus malabarismos só para
nós. Dei-lhe alguns reais (merecidos) e lhe desejei feliz Ano Novo.
Meu hóspede fez um comentário
que queria ser engraçado: "Poderíamos convidá-la para casa...".
Covardemente, reagi no estilo esperado (o do clube do Bolinha). Resmunguei "pois é...", num tom entre
incerto e maroto.
Mais tarde, fui assistir a "Em Direção ao Sul", de Laurent Cantet, que
estreava naquele dia. O filme (excelente) é inspirado em uma série de
contos do haitiano Dany Laferrière
("Vers le Sud"). O pano de fundo é o
Haiti dos anos 70: miséria e poder
ilimitado da gangue de papa Doc.
Três mulheres brancas e maduras
do hemisfério norte (duas americanas e uma canadense) passam suas
férias num hotel na beira da praia;
elas procuram o sol e, sobretudo, os
garotos negros, que namoram e
transam com elas e que elas pagam
em dinheiro e presentes.
Numa cena do filme, as mulheres
se perguntam por que não gostam
tanto dos negros de seus países de
origem. A pergunta vale para o turismo sexual em geral: por que ir tão
longe? Afinal, nas cidades do primeiro mundo, há uma ampla escolha de amores à venda. A troca é
mais barata no Haiti, no Brasil ou
nas Filipinas, mas (considerando o
custo da viagem) o argumento financeiro não se sustenta sozinho.
Os "tristes trópicos" de quem vive
no terceiro mundo são a condição
necessária para que existam os trópicos alegres do turista sexual. Mas a
razão disso não é só econômica.
Explico. Na vida erótica, funciona
uma espécie de proporção: para desejar sexualmente, é como se precisássemos, ao menos por um momento, despojar o outro de sua dignidade subjetiva, considerá-lo apenas como corpo. É por isso que, para
alguns, é impossível desejar e amar o
mesmo outro. É por isso que a maioria, na hora do sexo, não sussurra palavras de carinho, mas solta "injúrias" que rebaixam a parceira ou o
parceiro, ou seja, que o transformam em carne entregue ao desejo.
Nada de "meu anjo". Na cama, é "puta" e "cafajeste".
Nos lugares preferidos pelo turismo sexual, essa configuração banal
da vida amorosa está, por assim dizer, realizada de antemão: o turista
encontra sujeitos que já são reduzidos a seu corpo. Se não bastasse o
passado colonial ou escravagista, a
desigualdade brutal prepara os corpos tropicais para o festim do turista
sexual. Laferrière, num outro livro
("La Chair du Maître", a carne do
dono), escreve: "É simples: um pequeno grupo de pessoas possui, neste país, todo o dinheiro disponível.
Como se sabe, com o dinheiro dá para comprar tudo: os seres e as coisas". E os seres, nesse caso, podem se
tornar objetos eróticos sem empecilhos: destituídos de cidadania, eles
são, se não coisas, carne.
Por exemplo, Legba, o jovem negro que, no filme, é objeto de desejo
das senhoras, pode ser uma espécie
de felino que elas querem acariciar e
mimar porque já foi transformado
em bicho pela miséria social e política de seu país.
Com os negros do Norte, não é tão
fácil. Certo, eles são descendentes
de escravos e ainda assombram os
sonhos sexuais das elites brancas do
Norte, mas a diminuição da desigualdade e a conquista de direitos
políticos efetivos os tornaram cidadãos. Para lidar com seus corpos, é
necessário lidar também com suas
pessoas.
Saindo do cinema, pensei no comentário de meu conhecido sobre a
jovem malabarista de farol. Tanto
faz que ele fosse europeu: o Brasil
tem dois mundos suficientemente
separados para que seja possível
praticar turismo sexual sem sair do
país. Pela força do passado e pela
distribuição de riqueza que o preserva, somos divididos em gente e bichos, sujeitos e vira-latas que talvez
seja possível levar para casa, oferecendo um biscoito.
Algo resiste ao fim de uma desigualdade que priva os desfavorecidos de cidadania e os reduz a seu
corpo. E não são apenas dificuldades
administrativas e econômicas. A desigualdade é também uma fonte, talvez envergonhada, de prazer erótico; ela alimenta, nas elites, a fantasia
(apenas e mal reprimida) de estar, o
tempo todo, num harém de corpos
escravos.
ccalligariuol.com.br
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