São Paulo, domingo, 04 de janeiro de 2009 |
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Mônica Bergamo bergamo@folhasp.com.br Nós na fita Inspirado no livro-reportagem "As Meninas da Esquina", o longa "Sonhos Roubados" quebra a rotina dos moradores de Ramos, no Rio
Raquel, 16, está uma hora
atrasada para assumir o turno
da pequena loja de roupas onde
trabalha, a Carmenato -"junção do nome da patroa com o
nome do patrão". A vendedora
e moradora da comunidade de
Ramos, no Rio, queria, mas não
pode entrar na loja porque lá
está sendo rodada uma cena do
filme "Sonhos Roubados", de
Sandra Werneck. A garota está
impaciente e não apenas porque é comissionada e está perdendo vendas. A colega que invadiu seu horário está fazendo
uma pontinha como figurante.
E vai ter fala e tudo. "Não pude
ser figurante porque ninguém
me chamou e não gosto de ser
oferecida. Ah, e também me
disseram que não tinha mais
vaga", diz Raquel. Sandra Werneck é a primeira diretora a levar um longa-metragem para aquela favela. Inspirada no livro-reportagem "As Meninas da Esquina", de Eliane Trindade, o filme conta a história de três adolescentes que usam a prostituição como um dos meios de sobrevivência. Sandra finca seu tênis Diesel na areia suja da calçada, senta sobre a bolsa Prada, que esquece aberta com freqüência, e mantém a voz sempre doce, mesmo quando um figurante faz "jóia" para a câmera e estraga o que seria uma "cena perfeita". "Todo mundo está cooperando. Não tem risco, é só saber envolver os moradores, fazê-los vestir a camisa do filme. Contratamos pessoal daqui para fazer segurança pra gente", conta ela. Ao ver um não-figurante cruzar a rua com uma gaiola de passarinhos, fica extasiada: "Eu quero o homem com o passarinho em cena! Chamem o homem com o passarinho".
A atriz Nanda Costa, 23, chega ao set. A protagonista já está
caracterizada como Jéssica,
uma típica adolescente briguenta e sexy da favela. Trocou
o cabelo curto, que "num dia de
TPM fui na frente do espelho e
cortei", por um longo aplique
afro. Botou no umbigo um piercing de pressão, incorporou o
"sandalião de salto", passou a
usar barriga de fora e roupas
muito curtas. Ela também fuma cigarro de verdade em algumas cenas. "Não sou fumante,
mas sei tragar sem tossir. Já tive a fase de ir fumar Gudang
(cigarro mentolado) com os
amigos, sabe? Cheguei a gravar
13 vezes uma cena em que fumava e terminei o dia com dor
de cabeça e enjôo. Eca!"
Um rápido olhar para as figurantes que esperam ansiosas
pelo grande momento de passar ao fundo da cena e fica fácil
reconhecer nelas o mesmo figurino e o jeito displicente da
protagonista. Gláucia dos Santos, 19, desempregada, usa um
short curtíssimo, combinando
com uma blusa que deixa as dobrinhas da barriga de fora. Ela
conta que a produção pediu
"roupa normal, do dia-a-dia. Aí
botei essa combinação que é
simples, do tipo que uso no fim
de semana pra zoar com minhas amigas." Não é muito curto? "Tem gente que anda mais
tapada, mas a moda aqui em
Ramos é tudo bem curtinho." "Mudar a realidade de uma favela não é a pretensão do filme, mas quero que essas pessoas sonhem pelo menos por um dia." Em 2006, Sandra lançou o documentário "Meninas", sobre adolescentes grávidas no Rio. "O que mudou na vida delas depois do lançamento foi que quase todas engravidaram de novo! Os objetivos de uma garota com esse tipo de oportunidade é comprar uma calça nova para ir ao baile funk, fazer sexo porque é gostoso, arrumar filho. As garotas de classe média, como minha filha, estudam, querem se estabelecer profissionalmente e só depois pensam em ter filhos. Minha filha está aí ralando atrás de patrocínio para o filme dela." A produtora de cinema Maíra Da-Rin é filha de Sandra com Silvio Da-Rin, secretário do Audiovisual, ligado ao Ministério da Cultura. "Eu, como sou ex-mulher há uns 20 anos, posso concorrer nos editais [do MinC], mas nossa filha é proibida." Não há filmagem aos domingos em Ramos. "Não teríamos como controlar as mais variadas espécies de sons que a rua produz nesse dia. É churrasquinho na laje com um pagodão aqui, cultos da Assembléia de Deus ali, o funk que vem do carro passando, fica impossível." No dia de descanso, Sandra procura ficar reclusa em casa, em silêncio, "digerindo as informações da semana". Ela se dá ao luxo, no máximo, de convocar uma manicure para cuidar das unhas e arrumar os cabelos. "Supermercado? TV? Não dá, tá doida? Eu falava para um ex-namorado: "Nas seis semanas de filmagens, me esqueça." Ele dizia: "Mas nem café da manhã?" Nem café." Já é noite na favela. Aliás, os moradores corrigem: "O povo de fora fala favela, mas pra gente é comunidade". O jantar servido para a produção perto de uma quadra de esportes chama a atenção de Adriana 13, e de Luana,12. "Ô tia, pega uma gelatina lá pra nós", pedem. Luana está triste por não ter conseguido vaga na figuração, mas sabe tudo sobre o filme. "É que eu sou a maior fofoqueira e saio perguntando detalhes." Ela confidencia que se pudesse fazer uma promessa em Aparecida do Norte, interior de SP, "pediria para ser atriz". "Na verdade, pediria a minha mãe de volta, que morreu em agosto de Aids. Mas como não dá, pediria sim para ser atriz." Reportagem DÉBORA BERGAMASCO Texto Anterior: Horário nobre na TV aberta Próximo Texto: Em nome da mãe Índice |
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