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CRÍTICA
Filme disseca falcatruas políticas
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
Para muita gente, Oscar Wilde
(1854-1900) foi mais importante
do que os textos que escreveu.
Um dos raros grandes escritores
da história da literatura cuja vida
se sobrepôs à obra.
Assim também, suas peças ficaram famosas mais pela inteligência dos diálogos e pela presença
de espírito de algumas tiradas do
que por terem revolucionado a
história da dramaturgia mundial.
São obras mais de um estilista do
que de um inovador.
"O Marido Ideal", de 1895, é típica dessa sagacidade com que os
personagens se espetam uns aos
outros e com que revidam com
respostas ainda mais cortantes.
Comparada, no entanto, a "The
Importance of Being Earnest" ("A
Importância de Ser Ernesto", numa tradução que perde o duplo
sentido do título em inglês, mas
mantém a fidelidade ao tom farsesco do texto), considerada a
obra-prima do autor, "O Marido
Ideal" parece uma comédia menos radical e mais romântica.
É uma peça de diálogos, que depende muito dos atores, ainda
que na superficialidade desses jogos e mal-entendidos de sociedade que costumam fazer toda a
graça das comédias de costumes.
Daí o diretor Oliver Parker, sem
pretender nada além de uma
adaptação eficiente do texto, ter
optado por sustentar seu filme
num elenco competente, a começar por Julianne Moore e Cate
Blanchett, e à exceção da careteira
Minnie Driver.
Wilde é o rei do chiste. "O Marido Ideal" se passa no final do século 19, em Londres, onde as pessoas "ou estão à procura de maridos ou tentando se esconder deles". E onde caberá ironicamente
a um solteiro convicto (Rupert
Everett), para quem "a moda é o
que você veste e o que está fora de
moda é o que os outros vestem" (a
súmula do amor próprio), salvar
o casamento do pressuposto marido ideal.
Uma viúva arrivista, radicada
em Viena, volta a Londres para
chantagear um jovem e promissor político cujo discurso na Câmara será decisivo para o envolvimento do governo inglês num
empreendimento em que ela investiu seu dinheiro. A viúva tem
uma carta que compromete o
passado aparentemente honesto
do político e, por consequência,
seu casamento perfeito. É esse casamento -e a reputação do marido ideal- que seu amigo, o solteiro convicto (mas só até a última
cena), terá de defender, sofrendo
os mal-entendidos típicos de uma
comédia de erros.
O que está em questão aqui, por
meio de uma série de insinuações
espirituosas, é o que escondem os
casamentos e a política sob a égide da hipocrisia e da moral vitoriana. Da forma mais palatável,
graças ao disfarce da comédia romântica. Em meio à ironia ácida
que dá a esse "marido ideal" um
passado escuso e corrompido,
floresce um discurso singelo e
compassivo sobre a irredutibilidade do amor: "o amor não se
compra".
Ao final, tudo acabará bem, tudo será perdoado. Só que graças à
mentira. E o que a peça termina
dizendo, em sua aparência romântica, é talvez bem mais perverso e cínico do que o final feliz
deixa ver: que só pode haver vida
social pela mentira.
"A verdade é que menti", conclui a mulher inocente do político,
enquanto todos riem de felicidade. Porque nos jogos de sociedade
não pode haver verdade. Ela desregula as bases de todas as convenções e regras de comportamento. A verdade é incompatível
com a moral que reivindica a verdade. Resta, então, a graça da
mentira. Do teatro e das artes. A
razão por que, no final das contas,
todos acabam rindo sem saber
bem do quê.
Avaliação:
Filme: O Marido Ideal (An Ideal
Husband)
Produção: Inglaterra/EUA, 1999
Diretor: Oliver Parker
Quando: a partir de hoje nos cines
Cinearte 2, Pátio Higienópolis 1 e circuito
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