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CINEMA
Festival de Roterdã discute filme com tecnologia digital
LÚCIA NAGIB
ARTICULISTA DA FOLHA
O evento "What (Is) Cinema?", que se encerrou sexta-feira dentro do quadro do Festival
Internacional de Roterdã, constituiu um festival em si. Oito mesas-redondas, com uma vasta lista
de convidados ilustres, exposições de arte e uma variada mostra
de filmes compuseram o evento,
concebido como um questionamento sobre os rumos do cinema.
Os debates se abriram com a já
decantada questão sobre um possível fim do cinema, em razão do
surgimento de uma nova tecnologia. Passado o medo de que o vídeo pusesse fim ao celulóide e ao
glamour da sala escura, agora a
ameaça ressurge sob a forma da
tecnologia digital.
Formulada graciosamente como "The Happy End of Cinema",
a questão mereceu resposta bem-humorada do cineasta chileno radicado na França Raoul Ruiz. Ele
preferiu deslocar o problema para
o filme em si, afirmando que um
filme nunca termina se nele não
for inscrita a palavra "fim". Ruiz
trabalha atualmente num filme
"infinito", que já chegou à sua
quinta parte.
Para discutir o cinema em relação às outras artes, foram convidados cineastas experimentais
históricos, como Stan Brakhage e
Michael Snow. Foi aqui que o debate sobre a tecnologia digital se
enriqueceu, principalmente em
razão da última obra de Snow,
"*Corpus Callosum", inteiramente produzida com tecnologia digital e destinada a introduzir uma
nova percepção da imagem. Corpus callosum é o nome da parede
que transmite informações entre
os dois hemisférios do cérebro, e
Snow utiliza o termo para se referir a uma série de situações intermediárias entre formas humanas,
realidades e crenças.
Snow explicou à Folha sua convicção de que a imagem do computador é um processo neurológico, mais do que óptico. Não se trata de uma mimese do real, mas de
uma construção que consiste em
movimentar pixels de um lugar
para outro. Assim seus personagens, embora tomados diretamente do real, ao serem submetidos ao processo digital, sofrem
metamorfoses de alongamento,
achatamento e deformações várias, pelas quais seu caráter de
fantasmas se torna explícito.
Trata-se, sem dúvida, da velha
técnica antiilusionista com roupagem tecnológica, mas a obra de
Snow vai além do truque auto-reflexivo, colocando-se numa linha
tênue entre a comédia e a filosofia.
A imagem do vídeo estremece rapidamente e, quando volta ao
normal, os personagens (reais)
estão caídos no chão. O espectador ri, mas também sente a vertigem dessa suspensão entre real e
virtual em que a nova mídia o coloca.
Os debates prosseguiram abarcando outras tendências do cinema atual. A cinematografia étnica
esteve representada pelo novo fenômeno do gênero, Zacharias
Kunuk, cujo filme "Atanarjuat",
sobre os povos inuit do Pólo Norte, está conquistando a Europa.
A produção asiática foi discutida pelo taiwanês Hou Hsiao-hsien, o japonês Hirokazu Kore-eda e o chinês Zhang Yang. E esteve em pauta ainda uma tendência
que quer se firmar como um cinema de autor contemporâneo,
exemplificada por Catherine Breillat, cujos filmes "Romance" e "À
Ma Soeur" desenvolvem um gênero pornô-chique.
Scorsese
De modo geral, os debates, embora enriquecedores, não trouxeram respostas conclusivas. Mas,
considerando o perfil dos convidados e os filmes selecionados para o evento, não restou dúvida sobre "o que é cinema": tudo menos
Hollywood. Essa é, aliás, a definição por excelência do Festival de
Roterdã, que acolhe de braços
abertos quem quer que escape à
indústria, inclusive aqueles representantes ilustres do "mainstream", como Martin Scorsese,
que às vezes saltam o muro para
fazer aquilo de que realmente gostam.
Scorsese foi um dos destaques
na mostra de filmes, com seu
magnífico "Il Mio Viaggio in Italia". A julgar por esse filme, aliás, a
resposta sobre o que é cinema seria simplesmente "o cinema italiano até Antonioni".
O filme aponta desde o título
para uma viagem pessoal do diretor, que revisita seus antepassados sicilianos e os filmes que marcaram a vida deles e, consequentemente, do rebento ilustre nascido no Novo Mundo.
"Egotrip", alguns poderiam dizer. E o filme realmente não esconde uma alta dose de narcisismo. Mas isso não interfere na beleza sem par dessa obra de mais
de quatro horas, ao final das quais
o espectador ainda quer mais, ou
seja: quer rever por inteiro os clássicos cujos excertos foram ali tão
bem selecionados e montados.
Scorsese passeia por sequências
célebres de Rossellini, De Sica,
Visconti e Fellini com tanta paixão que transforma em fascinantes novidades nossos velhos conhecidos. Também porque, submetidas a meticulosas técnicas de
restauro, as cenas reaparecem
com novo brilho e uma infinidade
de detalhes normalmente imperceptíveis nas cópias gastas de que
dispomos.
A mostra se estendeu com o trabalho humanista de Kiarostami
("ABC África"), o político de Ken
Loach ("Navigators") e o metafísico de Mike Figgis ("Hotel"), entre outros. São todas obras mistas,
que lançam mão do vídeo e das
novas tecnologias, mas cujos autores, ignorando a morte anunciada do cinema, ainda preferem
chamar de filme.
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