São Paulo, sábado, 04 de fevereiro de 2006

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ROMANCE/"MISTO-QUENTE"

Aprenda a virar "freak" com Bukowski

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Bukowski não está morto, um viva ao velho sujo e feio Hank! As sucessivas reedições de seus livros apenas reafirmam a condição de duro na queda do poeta e narrador de Los Angeles. E então eis que surge nas bancas uma nova tradução de "Misto-Quente", sexta narrativa longa do autor e fora de catálogo por aqui há mais de 20 anos.
Espécie de romance de formação, "Misto-Quente" conta os desmazelos de infância e da adolescência de Henry Chinaski, alter ego e protagonista de parte dos livros de Bukowski, durante o período de recessão posterior a 1929 nos Estados Unidos. Filho de imigrantes e de um pai egoísta e violento, Chinaski submerge no cotidiano miserável do subúrbio em que vive para constatar sua total inadequação ao "american way of life" representado pelos colegas do bairro da escola rica em que estuda, obrigado pela imposição de sua família com ambições arrivistas. Não bastassem tais diferenças, que o restringem a observar o mundo de fora, a partir das margens das pistas de dança e dos campos de beisebol para os quais não é convidado, o garoto ainda é vitimado por grave caso de acne que o alija de vez do convívio social. É assim que Chinaski sobrevive às melhores fases da vida de uma pessoa: submetido a um doloroso tratamento a base de agulhas elétricas e emplastros, espancado e menosprezado pelo pai e por todos. O troco de Chinaski será dado em iguais doses de violência e insubordinação, claro. Apesar de ser produção tardia (o livro foi escrito pelo autor depois dos 60 anos), "Misto-Quente" é admirável ao registrar a dura perda da ingenuidade de um garoto e a sua posterior metamorfose em "freak" durante a puberdade.
O permanente interesse despertado pelos livros de Bukowski entre os jovens leitores talvez reflita a falência da indústria editorial em colocar na praça histórias que não sejam insossas, insípidas e inodoras. Talvez seja porque, de alguma forma, as cartilhas que regem a construção de narrativas pelos padrões do politicamente correto procurem ocultar o que não pode ser ocultado: a juventude de ontem, de hoje e de sempre permanece constituída da mesma carne -garotos e garotas cruéis com hormônios prestes a explodir e em busca de diversão que inclua drogas e álcool (de preferência). Porém a curiosa mistura de filosofia barata com a tradição da ficção andarilha e imigrante de Bill Saroyan e John Fante, culminou em obra consistente que hoje serve e por muito tempo ainda servirá como "porta de entrada" para a literatura aos leitores mais ineptos e tardios. Inexplicável é continuar a ler o autor por toda a vida em clima de adoração semelhante ao do "raulseixismo". No prefácio ao livro, o tradutor Pedro Gonzaga reclama para Bukowski uma poltrona na primeira fila, junto a autores mais consagrados. Aposto que o velho bebum preferiria o lugar em que realmente está, na terceira fila, onde assim pode rir de tudo.


Joca Reiners Terron é escritor, autor de "Hotel Hell" (ed. Livros do Mal), entre outros

Misto-Quente
  
Autor: Charles Bukowski
Tradução: Pedro Gonzaga
Editora: L&PM
Quanto: R$ 19,50 (318 págs.)


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