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DRAUZIO VARELLA
Óleo de rícino
Trinta anos atrás, uma senhora que sofria de reumatismo me contou ter sido tratada
com óleo de rícino. Duas vezes por
semana ela ia ao consultório, e o
médico perguntava: "Hoje a senhora prefere o vermelho ou o
alaranjado?". Vermelha era a cor
no pote que continha óleo de rícino com groselha; no outro, o óleo
vinha misturado com essência de
laranja, para disfarçar o gosto insuportável do purgativo.
Até aí, nenhuma novidade; em
tantos anos de profissão, já vi os
tratamentos mais estapafúrdios
prescritos tanto por médicos tradicionais como pela autodenominada medicina alternativa; o curioso, nesse caso, é que a receita
vinha de um renomado professor
universitário, autor de um tratado de clínica médica adotado em
várias faculdades. E, mais desconcertante: a senhora estava
convencida de que, graças à ação
do famigerado óleo, as dores entravam em períodos de acalmia.
Óleo de rícino é dotado de atividade anti-reumática? É muito
pouco provável que seja, mas a
medicina daquele tempo oferecia
poucos recursos e não era baseada em evidências experimentais.
Os médicos adotavam condutas e
receitavam remédios com base
em teorias jamais comprovadas
cientificamente ou de acordo com
idéias preconcebidas e experiências pessoais. Parte expressiva
desse entulho do empirismo ainda se acotovela nas prateleiras
das farmácias sob o rótulo de protetores do fígado, fortificantes, revitalizadores, complexos vitamínicos e de mirabolantes associações de panacéias que apregoam,
no rádio e na TV, curar males tão
diversos quanto falta de memória, fraqueza, irregularidades
menstruais, gripes e doenças do
fígado.
A explosão do conhecimento
científico que revolucionou a forma de praticar medicina na segunda metade do século 20 implantou o paradigma de que
qualquer tratamento médico só
pode ser adotado depois de haver
demonstrado eficácia estatisticamente significante em estudos
conduzidos com absoluto rigor
científico. A experiência pessoal
ou de terceiros é importante para
ajudar o médico a interpretar resultados e referendar ou não as
conclusões tiradas nesses estudos,
mas não é suficiente para substituí-los.
Por que a exigência desse rigor?
Primeiro, porque as doenças evoluem de forma imprevisível: curas
e recaídas podem suceder-se sem
qualquer relação com o tratamento instituído. Segundo, porque cada organismo reage de
acordo com suas idiossincrasias: o
remédio que cura um pode matar
outro. Terceiro, por causa da existência do efeito placebo, isto é, do
alívio que o simples ato de ir ao
médico e de tomar remédio pode
trazer para algumas pessoas.
Mil anos atrás, Isaac Judaeus,
médico de alta reputação no Egito, escreveu os seguintes aforismos: 1) A maioria das doenças é
curada pela natureza, sem ajuda
do médico; 2) Não confie em remédios que curam tudo, eles são
fruto da ignorância e da superstição; 3) Faça o paciente sentir que
será curado mesmo que você não
esteja convencido, porque assim
ajudará o esforço curativo da natureza.
O caso da vitamina C é um bom
exemplo. Nos anos 1970, o cientista Linus Pauling lançou a idéia
de que vitamina C em doses altas
melhoraria a imunidade, preveniria gripes, resfriados e até câncer. Por falta de apenas um, Pauling havia sido agraciado com
dois prêmios Nobel: o de Química
e o da Paz, mas entendia de medicina tanto quanto eu de pontes e
de barragens. O resultado foi o
uso indiscriminado de vitamina
C, porque usuários contumazes
que passam dois anos sem gripe
atribuem à vitamina o poder protetor; quem teve um resfriado que
foi embora em dois ou três dias
enquanto o do vizinho levou cinco, faz o mesmo.
O uso de vitamina C alardeado
por Pauling ainda rende centenas
de milhões de dólares em vendas
anuais, mas não foi suficiente para livrá-lo do câncer de próstata
no fim da vida nem demonstrou
qualquer eficácia na prevenção
ou tratamento de gripes e resfriados, em nenhum estudo realizado.
Agora vejam o caso da reposição hormonal, que alguns médicos defendiam estar indicada para todas as mulheres no climatério, porque os benefícios seriam
inúmeros; entre eles, o de reduzir
o número de ataques cardíacos,
porque a reposição provoca aumento do colesterol HDL ("protetor") e diminuição do LDL ("o
mau colesterol").
Então, os americanos publicaram em 2002 os resultados do mega-estudo conhecido como "Women's Health Initiative" (WHI),
no qual 160 mil mulheres vinham
sendo acompanhadas desde 1991.
Para surpresa de todos nós, na
comparação das mulheres que receberam reposição hormonal com
as que tomaram comprimidos-placebo, ficou claro que as primeiras tiveram 28% a mais de
ataques cardíacos, além de mais
derrames cerebrais, tromboses e
câncer de mama. Enquanto a reposição reduziu o número de fraturas por osteoporose e, inesperadamente, a incidência de casos de
câncer de intestino.
Não fosse esse estudo, quantos
milhões de mulheres estariam recebendo reposição hormonal com
a justificativa de reduzir o risco
de doença cardiovascular?
Hoje, ao indicarmos a reposição, dispomos de dados para analisar vantagens e desvantagens
naquele caso particular, e temos o
dever de discuti-las com nossas
pacientes, para que seja tomada
uma decisão conjunta.
A medicina baseada em evidências decretou o fim do médico lacônico, que impõe tratamentos
prescritos em hieróglifos. Na medicina moderna, o papel do profissional é apresentar as evidências e ajudar o doente a decidir
qual das opções é a mais adequada para seu caso.
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