São Paulo, quarta, 4 de fevereiro de 1998

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Cantor criou estilo com voz macia e apaixonada

JOÃO MÁXIMO
especial para a Folha

Na noite de 14 de maio de 1931, Silvio Caldas subiu ao palco do teatro Recreio, centro do Rio, para cantar "Faceira", de Ary Barroso, num dos quadros da revista "Brasil do Amor". Aplaudido de pé, teve de bisar o samba oito vezes. Foi o primeiro sucesso de uma carreira pode-se dizer única.
Silvio seria o cantor de mais longa atividade na música brasileira. Iniciou-se como profissional em 1927 e não parou de cantar nas quase sete décadas seguintes. E criou um estilo: o de seresteiro de voz morena, morna e apaixonada.
Silvio Narciso do Figueiredo Caldas nasceu em São Cristóvão, no Rio, em 23 de maio de 1908. Pertencia a uma família de músicos. Sua mãe, a baiana Alcina, cantava, e seu pai, o carioca Antônio, era afinador de pianos e compositor (é dele a valsa "Neuza", gravada por Orlando Silva).
Menino ainda, começou a cantar, participando, com seis anos, da "Casa dos Bigodinhos", clube onde aconteciam saraus. Depois, foi para a "Família Ideal", bloco que saía pelas ruas do bairro.
Ganhou então o apelido de "O Rouxinol da Família Ideal", primeiro dos muitos epítetos que teria pela vida afora: "o Caboclinho Querido", "A Voz Morena que a Cidade Adora".
Tinha apenas nove anos quando se iniciou no ofício de aprendiz de mecânico. Tornou-se conhecedor da profissão e também era bom pescador e exímio cozinheiro.
Em 1927, levado por Máximo de Albuquerque para um teste na Rádio Mayrink Veiga, conheceu o cantor de tangos Antonio Gomez, o Milonguita, a cujos ensinamentos Silvio atribuiria sua perfeita técnica de respirar e dividir.
Quando começou, havia dois estilos de cantores de música popular brasileira: os que se inspiravam no "bel canto", como Vicente Celestino, e os de voz pequena, "de bossa", como Mário Reis.
Silvio Caldas entra em cena entre um estilo e outro, somando à sua voz aveludada e ao mesmo tempo extensa o molejo que o permitia sentir-se à vontade em qualquer gênero. Bom compositor, em 1934 tornou-se parceiro de Orestes Barbosa. Passou então a musicar as letras do poeta, nascendo assim uma série de canções antológicas. A primeira, "Serenata".
Da dupla são também "Arranha-Céu", "Suburbana", "Torturante Ironia", "Vestido das Lágrimas", "Quase Que Eu Disse", "Santa dos Meus Amores" e, a mais famosa, "Chão de Estrelas".
Durante os anos 30, Silvio Caldas cantou em praticamente todas as emissoras de rádio do Rio. Criou então a fama que jamais o abandonaria: a de descumpridor de compromissos.
Por esse tempo, tornou-se um dos campeões do carnaval: "Linda Lourinha" e "Pastorinhas" foram sucessos lançados por ele.
Foi também o melhor intérprete de Ary Barroso, por mais que o compositor o negasse (dizia que seu preferido era Ernani Filho). Silvio Caldas foi praticamente o único cantor da chamada "era de ouro" da música brasileira a sobreviver à modernização pré-bossa nova dos anos 50 e mesmo ao movimento que viu surgir João Gilberto e seus discípulos.
Durante esse tempo, gravou vários LPs, fez shows em teatros e boates, apresentou-se no rádio e na televisão, alternando aparições e sumiços, que eram recebidos como aposentadorias que acabaram virando piada no meio musical.
Cada novo retorno explicava que o grande segredo de sua vida era recomeçar sempre.
Exemplos de recomeço são o segundo casamento, aos 56, e sua corajosa reação à morte do filho de nove anos, em 1974, atropelado por um automóvel. Atribuiu a tragédia à "vontade de Deus" e, dois anos depois, estando com quase 70, nascia-lhe outro filho.


João Máximo é jornalista


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