São Paulo, sexta-feira, 04 de março de 2011

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CARLOS HEITOR CONY

Se a canoa não virar


Amavam-se e tudo o mais, o resto do mundo, da vida, perdia significação e prazer; assim era no Carnaval


NO FUNDO, no fundo, desprezavam o Carnaval. Tinham muito no que pensar, no que falar e, sobretudo, no que fazer: amavam-se e tudo o mais, o resto inteiro do mundo e da vida perdia significação e prazer. O que não fosse de um e de outro, inexistia. E assim era no Carnaval.
Como todo mundo, fugiam da cidade, se enfurnavam em hotéis, motéis e bibocas ao longo de Búzios, Cabo Frio e Arraial do Cabo -e ali curtiam o sol, as caipirinhas, os camarões torrados. E, quando as praias ficavam desertas, eles chegavam a se amar na areia, quentes de sol, salgados de mar.
Mas tudo tem seu dia. Ou melhor: sua noite. Num desses Carnavais, eles acordaram no meio da noite. A praia estava deserta, o vento carregava a areia fina e salgada das praias e incomodava. Caíram mais uma vez no mar e voltaram para o motel. Ao longe, o som cadenciado de um baile.
Todos estavam no Carnaval e eles decidiram assuntar. Não custava. Com panos e fitas improvisaram fantasias. Ela transformou a toalha de praia num saiote de havaiana -e como tinha ancas fortes e coxas redondas, ficou muito bem.
Ele descobriu uma bermuda, ela colocou umas flores em cima -pronto. Eram dois havaianos completos e podiam ser admitidos no melhor baile da cidade, o que exigia fantasia ou rigor.
Tomaram duas caipirinhas reforçadas para livrar a cara daquele vexame e lá foram. Nunca tinham ido a um baile juntos, nunca tinham feito Carnaval e havia certa expectativa, certo mistério na primeira vez.
Para facilitar as coisas, na porta do clube uma barraquinha vendia máscaras de pano, imitação pobre das máscaras de Veneza e de seu Carnaval. Ele ficou parecendo o Zorro, ela, a colombina, com a mesma máscara negra que não dava para esconder os olhos enormes e verdes.
Sentiram-se estranhos naquele mundo que fazia alegria e suor. Eles nem suavam nem estavam propriamente alegres: eram felizes -o que é diferente. Mais duas caipirinhas e aí a orquestra explodiu, explodiram as mulheres de todos os cantos. Combinaram que cada um se viraria sozinho -para ver no que ia dar. Se desse nalguma coisa.
Ele não era bom de dança nem de Carnaval, mas com as caipirinhas acumuladas até que deu para o gasto. Uma mulher queimada de sol, com uma túnica romana molhada de suor, segurou-o pela nuca e levou-o para o miolo da pista.
Já naquele tempo não havia música nova de Carnaval, o repertório era um compacto de sucessos antigos e, assim, ele conseguiu cantar a jardineira que caiu do galho, chegou o general da banda, se a canoa não virar eu chego lá, mais de mil palhaços no salão, atravessando o deserto do Saara o sol estava quente e queimou a nossa cara, olha a cabeleira do Zezé, você partiu, saudade me deixou, a estrela Dalva no céu desponta e a lua anda tonta...
A mulher da túnica romana tinha um vago cheiro de maconha misturado ao cheiro do suor, talvez fosse uma conhecida, nunca se sabe. A orquestra atacou o Bigorrilho, bigorrilho foi quem me ensinou a tirar o cavaco do pau, nada fazia sentido mas de repente estavam juntos, as pernas quase enroscadas: fazia sentido.
De repente, também, ele viu passar ao lado um saiote havaiano escondendo ancas fortes e duas coxas redondas. Largou a recém-companheira e foi atrás da havaiana, era aquilo que a sua carne pedia e exigia. Mas a havaiana pulava sozinha, sumia, aparecia aqui e ali, sumia, que diabo de mulher aquela.
Ele arrancou a máscara que o incomodava, disposto a achar aquela havaiana -a única que merecia uma traição, um bode. Pronto, lá estava ela, dançando para a orquestra, de costas para o resto do salão. Ele chegou perto, tomou-a pelo ombro. "Saravá, meu pai, vou te benzer..." A música era agora um velho ponto de macumba estilizado para o salão.
A havaiana virou o rosto, pelo buraco da máscara ordinária ele viu os dois olhos verdes, olhos que a identificavam, mais do que as ancas fortes e as coxas redondas.
O Carnaval, para eles, terminou ali. Foram para a praia amar mais uma vez. Ao longe, ouviam a cantoria da festa que vibrava no ar, mais forte do que as ondas que arrebentavam no corpo deles. A canoa virou, mas eles chegaram lá.

AMANHÃ NA ILUSTRADA
Fernanda Torres


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