São Paulo, quarta-feira, 04 de abril de 2007

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MARCELO COELHO

O triunfo da picaretagem

Tive esperança de ganhar na Mega-Sena. Dado o meu negativismo, desmentiria "O Segredo"

NÃO CONSEGUI ver mais que dez minutos de "O Segredo", DVD de auto-ajuda que mereceu uma ruidosa capa na "Veja" desta semana, além de boa dose de crítica nas páginas internas da revista. A idéia do documentário, até onde pude acompanhar, parece ser a de que se você quiser muito, mas muito mesmo, ganhar na Mega-Sena, isso vai acabar acontecendo. Se não acontecer, é porque você não teve fé o suficiente.
Desse modo, mesmo o insucesso das estratégias propostas no DVD termina confirmando, se quisermos, a tese original -e aos céticos nada mais resta do que ridicularizar a tese, sem ter como provar o seu absurdo. Pode-se apenas (e como são fracas as luzes da razão!) dizer que uma teoria dessas não tem nenhuma consistência científica, pormenor que não interessa minimamente a seus adeptos.
Acalentei por alguns instantes a esperança de ganhar, eu mesmo, na Mega-Sena. Seria, dado o meu negativismo, um desmentido enfático às teorias do DVD. Mas é claro que não funciona assim.
Meu negativismo seria visto como uma simples película de auto-engano a recobrir meu intenso poder de realização espiritual. E, se não for o meu, há de ser o da nora que eu nunca tive, e que talvez nem tenha nascido ainda, mas que já está em algum lugar cuidando do patrimônio dos meus netos no futuro.
Não adianta pensar muito sobre o caso. Acho apenas curioso que só agora, depois de muitas décadas de livros de auto-ajuda, esse tipo de coisa tenha passado para a linguagem audiovisual. Apesar de cético, sou moderadamente otimista. Espero que os DVDs de auto-ajuda terminem diminuindo a quantidade de livros a respeito, deixando a página impressa um pouco menos carregada de tanta empulhação.
O problema, sem dúvida, é que os livros têm ainda certa vantagem nesse mercado. Um documentário impressiona mais e exige menos esforço cerebral para ser absorvido; entretanto, esquece-se com facilidade. E a auto-ajuda depende de muita repetição. É necessário que nossa voz interior repita, a cada parágrafo, os truísmos publicados; auto-ajuda é auto-convencimento, e dificilmente um DVD terá esse poder.
Um livro ainda guarda, talvez, certa credibilidade intelectual que filmes e programas televisivos não possuem; nestes, a ficção predomina e os efeitos visuais podem, por si mesmos, substituir a imaginação do espectador. Já a palavra, quando escrita, quando transmitida do rádio ou do púlpito, mobiliza melhor a crença de cada um. Expectativas, medos e projetos correm melhor em nossa mente se não carregarem consigo imagens concretas. Afinal, trata-se de invocar o futuro, que não tem forma definida.
Mesmo assim, o DVD é um su- cesso. Se a auto-ajuda tinha até agora mais afinidade com o livro impresso, tudo indica que os tempos estão mudando e que, para adotar um tom profético, o fim das livrarias de shopping está mais próximo do que nunca.
Enquanto isso (volto ao meu otimismo básico) parece haver sinais de alguma reação por parte dos defensores da ciência e do racionalismo. O livro de Richard Dawkins, "The God Delusion", está para ser traduzido no país de frei Galvão.
Outro livro corajoso acaba de ser publicado pela editora Record. Trata-se de "Como a Picaretagem Conquistou o Mundo", do jornalista britânico Francis Wheen. Ele é dos tais que, com razão, encontra mistifórios e lorotas ("mumbo-jumbo" é o termo do original inglês) onde quer que ponha os olhos.
O primeiro capítulo ataca os mitos econômicos da era Reagan; o segundo investe contra Hillary Clinton (que teve conversas espíritas com Gandhi) e Tony Blair (que se entregou a rituais mágicos no México).
O livro de Wheen traz a auto-ajuda de que todo racionalista andava precisando nos últimos tempos. O problema é que a agressividade de Francis Wheen, além de pregar aos convertidos, mistura tudo no mesmo saco: Deleuze e Deepak Chopra, desconstrucionistas e contestadores do Holocausto, todos são tratados com igual velocidade, incompletude de argumentos e humor bastante pesado.
Nessa linha, o melhor é ficar com um livro mais antigo, informativo e bem dosado na ironia: "Ilusões Populares e a Loucura das Massas", de Charles Mackay (1814-1889). Foi publicado originalmente em 1841 e saiu no Brasil, pela Ediouro, em 2001, isto é, 160 anos depois. Como eu disse, não se deve perder nunca a esperança.


coelhofsp@uol.com.br

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