São Paulo, terça-feira, 04 de maio de 2004 |
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FERNANDO BONASSI Os foragidos Eu sempre soube lutar. E
sabia que eles viriam, mais
dia, menos dia. Esperava por isso.
Páginas e páginas de prontuários
exibidos com descaso. Uma biografia de maldades arremessadas
no ventilador das repartições
acusadas de preguiça. Delegados
acossados por governadores assustados. Promotores arrepiados.
Juizes indignados. Parentes e
amigos lavando as mãos dos compromissos acordados. Todos
aqueles retratos rabiscados de ouvir dizer, pretos no branco, grudados nas portas das escolas e dos
supermercados. A população insone. A produção parada. O comércio fechado. Eu sou o culpado.
Cada um vive como pode, por
mais que queira. Vieram com a
fome de sempre, mas agora têm
certeza de encontrar. E gritam enquanto se espalham. A excitação
estampada nas camisas empapadas. O volume das pistolas crescendo-lhe entre as pernas. Salivam diante do serviço prestado.
As sirenes pipocando pelos postes.
Uma atenção redobrada. Uma
tensão liberada. Um espetáculo.
Um escândalo. Todos temos reputações a zelar. Todos roemos a
mesma corda. Cachorros treinados cheiram meus trapos. Coletes
blindados ajustados nos estômagos estufados. Os celulares clonados mal conseguem dar conta dos
recados passados em código. Um
plano é traçado. Um batalhão é
posicionado. Um megafone é ligado. Ouço chamarem meu nome,
depois o mastigam com raiva. Eu
sempre soube lutar, de modo que
me preparo. Alongo os músculos.
Cerro os punhos. Afio os nervos e
confiro a carga. Estão por toda
parte. Rastejam por cima do telhado, esvaem-se por canos enterrados, escorregam pelas paredes
cheios de manhas e ventosas. Há
um tremor embaixo de mim.
Dentro de mim. Trocam sinais difíceis de entender pelos inocentes
que procuram abrigo entre árvores e automóveis abatidos, abandonando pratos e aperitivos intocados. O trânsito se complica. Dezenas de quilômetros de congestionamento, atrasando ambulâncias e lotações. Helicópteros vasculham com os fachos azulados
de suas câmeras ávidas de desejo
e anunciantes. Repórteres varejadores seguem o roteiro previamente acertado. Estou cercado.
Na vida real. Ao vivo. Todos os
meus caminhos foram bloqueados por essa reação em cadeia. Eu
sempre soube lutar. Não sou de
rezar. Corro atribulado. Pulo
uma janela, ao acaso do chão que
houver por baixo. Quando chego
a ele, algo errado acontece com
meu calcanhar. Não tenho tempo
pra detalhes anatômicos. Aproveito o calor da hora pra esquecer
mais essa dor. A cidade me dando
as costas com muros cobertos de
musgo, cercas elétricas e cacos de
vidro. Também não há novidade
nisso. Nem mais felicidade nas
portas abertas. Quando estou pra
me atirar por uma saída qualquer é um vulto que aparece
adiante. Chega muito perto com
aquela coisa apontada. Uma confiança desgraçada. O suficiente
pra que eu lance meu corpo, minhas pernas estiradas num giro
maluco. Um só golpe e arranco-lhe o ferro das mãos. Bate na parede soltando faísca. Fica inútil lá
longe. Nem olho pro que não me
interessa mais. Rápido, faço com
ele o que ele queria fazer de mim.
Tudo é uma questão de oportunidade, e eu sempre soube lutar.
Volto à fuga disparada. Os gatos e
os ratos se separam. Os bêbados
escondem as garrafas. Chefes de
família imploram por suas filhas
perdidas enquanto avanço por
becos e vielas escuras. A favela fica muda. Ouço terços sendo ralados. As preces vazando pelas venezianas trancadas às porradas.
Deus está fechado nesses quartos
de despejo. Assim eu vejo. E escorrego pelo lixo acumulado, onde
me sinto à vontade nos movimentos. Salto por carcaças abandonadas e ilusões perdidas, móveis a
crediário, eletrodomésticos enguiçados e televisores sintonizados.
Ainda pretendo consertar os dentes e comprar uma casa com suíte
pra minha mãe. A mãe de meus
filhos fará plástica nos seios caídos. Meus filhos crescidos haverão de ter orgulho do que tanto
lhes envergonha no momento. Eu
sempre soube lutar e sei separar
as coisas. Por trás de um armazém, são dois os que me espreitam
desenganados. A surpresa os faz
hesitar um segundo precioso.
Reajo, que eu sempre reagi muito
bem nessas circunstâncias. Esses
outros seguem o pioneiro deles,
praquele lugar onde queriam me
mandar. Um inferno frio de cadáveres estirados onde os pecados
são contados e medidos. Já não
vão me levar sozinho. Às tontas,
engano atiradores de elite e viaturas desencontradas. Armas pesadas disparadas por nada, latarias
amassadas nas esquinas vigiadas.
Um prejuízo enorme aos cofres
públicos escancarados. Não posso
saber o quanto. Só quero saber de
ir embora. O quanto antes. Abaixo a cabeça e sigo pra onde aponta o meu nariz escorrendo. Eu
também tenho faro. Sinto o perfume do mato onde hei de me perder dos encostos no meu encalço.
Quando estou a poucos passos,
tem aquele último. Também tem
uma arma na mão. Por um instante sei que posso alcançá-la.
Depois ele percebe minha intenção. E sorri como um anjo de
guarda. Eu sempre soube lutar,
mas de novo é o segundo precioso.
Agora contra mim. O clarão se espalha do revólver, a flor de pólvora incendiada. Um suspiro. Uma
pedrada. Minhas pernas que falham, um calor meloso irradiando da testa, uma fraqueza generalizada. Cansado de tudo, me
deixo cair ao sabor dos acontecimentos... relaxo definitivamente... demais, talvez... agora mesmo
eu tento me erguer... não me ajudam... eu sempre soube lutar, mas
eles preferem ficar olhando...
acendendo velas... fingindo que
eu nem existo mais. |
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