São Paulo, quarta-feira, 04 de maio de 2005

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SOB A NÉVOA DA GUERRA

Longa de Ridley Scott, em que o britânico louva indiretamente o atual governo americano, estréia na sexta

"Cruzada" faz apologia velada da era Bush

Divulgação
À partir da direita, os atores Liam Neeson, Jouko Ahola, Orlando Bloom e David Thewlis em cena do filme "Cruzada"

SÉRGIO DÁVILA
DA CALIFÓRNIA

"Deus quer assim!"
As palavras saíram da boca de Urbano 2º em 1095, quando o papa convocou a Europa cristã a reconquistar a Terra Santa dos "infiéis", iniciando as Cruzadas. Mas poderiam ter sido ditas por George Bush 2º, que se declarou "cristão renascido" em 1999, já disse a membros de seu gabinete frases como "Não o vi na leitura matinal da Bíblia de ontem" e tem seu segundo mandato marcado pela ascensão da direita cristã, que aos poucos dita o debate intelectual e cultural do país. (Após o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001, o próprio presidente dos EUA chamara inicialmente de "cruzada" o que depois rebatizaria de "guerra ao terror".)
Este é o contexto não-assumido de "Cruzada", superprodução hollywoodiana de US$ 130 milhões (R$ 326,89 milhões) e 15º longa do britânico Ridley Scott que estréia no Brasil e mundialmente depois de amanhã. O filme se passa durante a trégua celebrada pelo cristão Balian de Ibelin e o sultão Saladino entre a segunda e a terceira cruzadas, em 1187, na fase turbulenta que sucedeu a morte de Balduíno 4º, então rei de Jerusalém. "Com exceção de alguns detalhes, "Cruzada" até que é fiel do ponto de vista histórico", disse Nancy Caciola, especialista em história européia medieval da Universidade de Michigan.
Mas o perigo mora nos detalhes. Não é obra do acaso a escolha dos atores que interpretam os puros Balian e seu pai, franceses originalmente e aqui vividos pelos britânicos Orlando Bloom e Liam Neeson, respectivamente. Assim como não é aleatório o episódio específico escolhido por Scott dentro de um período que se estica de 1095 a 1291 e é rico em momentos históricos. Nem o modo talvez maniqueísta de retratá-lo no filme. Quem põe tudo (no caso, a frágil paz que poderia moldar as relações entre Oriente e Ocidente no porvir) a perder, por exemplo, são os radicais que assessoram Saladino e os corruptos afrancesados que cercam a corte de Balduíno, uns como outros vilões caricaturais.
Esqueça o diretor que revolucionaria o cinema de ficção científica com "Alien" (1979) e "Blade Runner" (1980). Com "Cruzada", Ridley Scott completa sua, digamos, "Trilogia do Império", que começou com "Gladiador", em 2000, e teve "Falcão Negro em Perigo", de 2001, no meio. São três filmes em que o britânico louva de maneira incondicional o império norte-americano, primeiro como sucessor e sucedâneo do romano, depois como libertador de selvagens mal-agradecidos, agora como condutor da nova "guerra santa" que se impõe.
Ele próprio discorda, como afirmou em entrevista à Folha. Diz que quando se interessou pelo projeto de "Cruzada", estava apenas em busca da semelhança entre o cavaleiro e o caubói, ambos heróis solitários que fazem justiça com as próprias mãos e respondem apenas a uma ética própria, porém guiada por valores maiores e universais. E nega qualquer propósito político ou influência do zeitgeist do país em que vive.
O diretor é da mesma geração de publicitários britânicos que fariam a fama em Hollywood a partir da década de 80, gente como seus amigos Adrian Lyne (de "Atração Fatal", entre outros) e Alan Parker ("O Expresso da Meia-Noite") e seu irmão Tony ("Top Gun - Ases Indomáveis").
Desde a virada do século, porém, talvez como gratidão pelo sucesso financeiro alcançado aqui (seus 13 filmes norte-americanos renderam quase US$ 800 milhões, cerca de R$ 2 bilhões), Scott virou uma espécie de braço audiovisual da coalizão anglo-americana formada principalmente a partir do 11 de Setembro, mas consolidada com a invasão do Iraque, uma versão fílmica da aliança Bush-Blair.

Saladino barrado
Um dos destaques de "Cruzada" é Saladino, tanto o personagem histórico quanto sua representação na tela. De acordo com o historiador Hamid Dabashi, titular de estudos iranianos da Universidade Columbia, "o sultão sempre foi considerado figura menor no universo do islã e só se tornou o personagem mítico captado pelo filme por influência de obras ocidentais elogiosas dos séculos 18 e 19" -que seriam depois consumidas e amplamente divulgadas pelo mundo árabe ao longo do século passado, influenciando até Saddam Hussein, que se dizia sucessor do herói.
Saladino é interpretado com graça e talento pelo ator e dramaturgo Ghassan Massoud. Ele não constava entre os que falavam à imprensa durante o lançamento do filme em Los Angeles, há algumas semanas. "Houve um pequeno incidente, mas estamos tentando resolvê-lo", disse então Ridley Scott. A Folha apurou o "pequeno incidente": sírio, Massoud teve seu visto de entrada negado pelos Estados Unidos, por ter nascido num dos países apontados pelo Departamento de Estado norte-americano como abrigo de terroristas.
Esse "pequeno incidente" talvez resuma "Cruzada" e a "guerra santa" de que o filme trata, a de então e a de hoje.


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