São Paulo, terça-feira, 04 de junho de 2002

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CRÍTICA

Um Brasil que ainda não aprendeu a se gostar

DA REPORTAGEM LOCAL

Mais que de geração, a grande diferença entre Boca Nervosa e Leandro Lehart em 2002 é de produção.
Lehart ainda é um artista de poder dentro da indústria, mais pelo que até aqui ele fez de duvidoso que de inventivo. Boca, não, é artista de gueto mesmo, que trabalha contra todas as condições desfavoráveis.
Seu híbrido "High Society da Favela" é um disco independente, de produção precária e voz nada límpida, concebido apenas com sangue e suor. A dita versatilidade à moda paulista transita especialmente entre dois pólos.
No mais "puro", Boca é partideiro da linhagem de Almir Guineto e Zeca Pagodinho, em sambas malandros de Wilson Moreira ("Mel, Mamão com Açúcar"), Mário Sérgio ("Nego Véio" regravado), Dicró ("Olha a Rima").
A essa vertente soma-se o Boca compositor, sempre satírico e capaz de críticas ferinas como a do partidão "Poeira em Brasília", sobre o episódio da violação do painel de votação no Congresso.
No outro pólo, Boca deita e rola (mesmo sob parca produção) nas cores samba-rock de "O Telefone Tocou Novamente" (70, de Jorge Ben), "Tereza Raquel" (84, do grupo Cravo & Canela), "Tereza" (de Adil Monteiro) e suas próprias e amalucadas "Desinglês" e "Sambare, Sambare".
"Leandro Lehart", por sua vez, é o disco que Boca Nervosa poderia estar fazendo em 2002 se a história que ele iniciou lá por 1983 houvesse adquirido impulso, apoio industrial, força produtiva.
Lehart pratica, ali, o hibridismo extremo que o samba paulista propusera desde Boca. Sem precisar dos pólos opostos do outro e contando com habilidades notáveis de produtor, o mais jovem pode consumar com atrevimento e sem receios a raiz paulistana de saber e querer misturar estilos -debaixo de forte pulso próprio.
Cabem ali balada mela-cueca ("De Agora em Diante", tão cafona quanto deliciosa), samba-funk (a magnífica "Não Adianta", lançada em 75 pelo Trio Mocotó e convertida em poderoso funk levado no baixo de Arthur Maia), soul romântico ("Amanhã", de vocais belamente divididos com Luciana Mello), samba-soul à Azimuth ("Garoa"), xote latinizado ("Namoro ou Amizade")...
Se no disco individual anterior ("Solo", 2001) Lehart pegava firme no soul chique, aqui ele centra fogo em sonoridades afro-samba-rock, em "Meu Pássaro Fugiu", "Não Adianta", "Torcida Futebol Clube", "Família Brasileira" e "Camila Bandida" (de letra excessivamente moralista).
Mais que descoberta tardia do samba-rock, essas representam um retorno de Lehart ao Art Popular de "Pimpolho" (96) e "Agamamou" (99). São sambalanços com a logomarca de Leandro Lehart, originais como poucas coisas na música brasileira atual.
O mais incrível? Na ressaca da monstruosidade mercadológica dos anos 90, entre Belos e Alexandres Pires, Leandro é que se vê arremessado de volta ao gueto, quase como se fosse um Boca Nervosa em seus primeiros passos. Será que o Brasil nunca vai se gostar?
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES)


High Society da Favela   
Artista: Boca Nervosa
Lançamento: Canta Brasil
Quanto: R$ 25, em média

Leandro Lehart    
Lançamento: EMI
Quanto: R$ 25, em média




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