|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CRÍTICA
Um Brasil que ainda não aprendeu a se gostar
DA REPORTAGEM LOCAL
Mais que de geração, a grande diferença entre Boca
Nervosa e Leandro Lehart em
2002 é de produção.
Lehart ainda é um artista de poder dentro da indústria, mais pelo
que até aqui ele fez de duvidoso
que de inventivo. Boca, não, é artista de gueto mesmo, que trabalha contra todas as condições desfavoráveis.
Seu híbrido "High Society da
Favela" é um disco independente,
de produção precária e voz nada
límpida, concebido apenas com
sangue e suor. A dita versatilidade
à moda paulista transita especialmente entre dois pólos.
No mais "puro", Boca é partideiro da linhagem de Almir Guineto e Zeca Pagodinho, em sambas malandros de Wilson Moreira
("Mel, Mamão com Açúcar"),
Mário Sérgio ("Nego Véio" regravado), Dicró ("Olha a Rima").
A essa vertente soma-se o Boca
compositor, sempre satírico e capaz de críticas ferinas como a do
partidão "Poeira em Brasília", sobre o episódio da violação do painel de votação no Congresso.
No outro pólo, Boca deita e rola
(mesmo sob parca produção) nas
cores samba-rock de "O Telefone
Tocou Novamente" (70, de Jorge
Ben), "Tereza Raquel" (84, do
grupo Cravo & Canela), "Tereza"
(de Adil Monteiro) e suas próprias e amalucadas "Desinglês" e
"Sambare, Sambare".
"Leandro Lehart", por sua vez, é
o disco que Boca Nervosa poderia
estar fazendo em 2002 se a história que ele iniciou lá por 1983 houvesse adquirido impulso, apoio
industrial, força produtiva.
Lehart pratica, ali, o hibridismo
extremo que o samba paulista
propusera desde Boca. Sem precisar dos pólos opostos do outro e
contando com habilidades notáveis de produtor, o mais jovem
pode consumar com atrevimento
e sem receios a raiz paulistana de
saber e querer misturar estilos
-debaixo de forte pulso próprio.
Cabem ali balada mela-cueca
("De Agora em Diante", tão cafona quanto deliciosa), samba-funk
(a magnífica "Não Adianta", lançada em 75 pelo Trio Mocotó e
convertida em poderoso funk levado no baixo de Arthur Maia),
soul romântico ("Amanhã", de
vocais belamente divididos com
Luciana Mello), samba-soul à
Azimuth ("Garoa"), xote latinizado ("Namoro ou Amizade")...
Se no disco individual anterior
("Solo", 2001) Lehart pegava firme no soul chique, aqui ele centra
fogo em sonoridades afro-samba-rock, em "Meu Pássaro Fugiu",
"Não Adianta", "Torcida Futebol
Clube", "Família Brasileira" e
"Camila Bandida" (de letra excessivamente moralista).
Mais que descoberta tardia do
samba-rock, essas representam
um retorno de Lehart ao Art Popular de "Pimpolho" (96) e "Agamamou" (99). São sambalanços
com a logomarca de Leandro Lehart, originais como poucas coisas na música brasileira atual.
O mais incrível? Na ressaca da
monstruosidade mercadológica
dos anos 90, entre Belos e Alexandres Pires, Leandro é que se vê arremessado de volta ao gueto, quase como se fosse um Boca Nervosa em seus primeiros passos. Será
que o Brasil nunca vai se gostar?
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES)
High Society da Favela
Artista: Boca Nervosa
Lançamento: Canta Brasil
Quanto: R$ 25, em média
Leandro Lehart
Lançamento: EMI
Quanto: R$ 25, em média
Texto Anterior: Sambalanço & outras levadas Próximo Texto: Fala Boca Índice
|