São Paulo, terça-feira, 04 de junho de 2002

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Sambalanço & outras levadas


Os músicos Boca Nervosa, 39, e Leandro Lehart, 30, representam duas gerações da mistura paulista de samba, rock e pop negro e lançam agora discos novos


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

Boca Nervosa, 39, cravou em 1985 o sucesso "Nego Véio", mas nem por isso saiu até hoje dos guetos do samba e do samba-rock de São Paulo.
Leandro Lehart, 30, venceu os anos 90 como o maior arrecadador brasileiro de direitos autorais, graças à atividade de compositor de pagode e ao sucesso nacional de seu grupo Art Popular. Com a derrocada do gênero pagode, virou artista solo e vive a sensação de estar de novo na estaca zero.
Integrantes de gerações musicais distintas e lançando agora discos novos, os dois guardam em comum a ligação umbilical com o samba "made in São Paulo" e com a versatilidade, que dificulta a rotulagem de seus trabalhos.
Em "High Society da Favela", Boca Nervosa faz samba, partido-alto e, acima de tudo, samba-rock, sambalanço, samba-soul à Jorge Ben. Em seu segundo álbum solo, homônimo, Leandro Lehart se ocupa de balada, pop, pagode, xote e, acima de tudo, samba-rock, sambalanço, samba soul à Jorge Ben.
As coincidências atuais -especialmente a marginalização no mercado e a influência central do som de Jorge Ben- motivaram a Folha a propor aos artistas uma conversa conjunta.
Ben, hoje Ben Jor, foi tema instantâneo e recorrente. "Ben Jor é o Tom Jobim da negrada. Ele mesmo não tem noção do valor da sua obra. Não quero dividir a música em preta e branca, mas, enquanto os branquinhos cantavam "um cantinho e um violão", ele vinha de [cantarola com voz ríspida" "o telefone tocou novamente". Era como Beatles versus Jackson Five", compara Lehart, que utiliza levadas "ben" em "Torcida Futebol Clube" e "Camila Bandida".
"Quando eu era pequeno, adorava Trio Mocotó, Originais do Samba e a levada de piano e violão de Jorge Ben. Ele hoje diz que nunca fez samba-rock e, de certa forma, nunca fez mesmo. Ele é um suingueiro", opina o ex-puxador de samba da escola Camisa Verde e Branco Boca Nervosa, apelido adquirido no dia em que passou quatro horas cantando sem parar, num baile. "O Telefone Tocou Novamente" (70), de Ben, é um dos carros-chefes de seu CD.

Samba de Sampa?
Lehart fala, então, da influência recebida de Boca Nervosa e outros paulistas da geração 80 (como Grupo Fundo de Quintal e Branca di Neve, por exemplo):
"Na década de 80 ele era para nós o pop star da parada, com "Nego Véio", composta com Mário Sérgio, do Fundo de Quintal. Eu me lembro de um show que vi dele com Clementina de Jesus, chamado "Duas Gerações", o sambista mais novo encontrando a sambista mais velha. Peguei um caminho já bastante aberto por eles. Antes dos grupos de pagode dos anos 90, sambista aqui ainda sofria muito preconceito".
Boca é quem conta: "Nos anos 80 sambista não tinha banda. Vinham do Rio se apresentar aqui e não tinham dinheiro para trazer banda, então minha banda acompanhava Ivone Lara, Martinho da Vila, todo mundo". "O Art Popular também acompanhou essa gente toda", completa Lehart.
Boca e Lehart discutem se existe um samba com carimbo paulista e se esse seria o impuro samba-rock que eles praticam.
"A cara de São Paulo é o samba tradicional, os Demônios da Garoa já foram a cara do samba de São Paulo", entra Boca, discordante. "Em baile de salão é que todo mundo dança o samba-rock. Isso acho que é uma coisa de São Paulo, sim."
"No Rio o samba-rock não é tão popular assim, até hoje tenho certo receio de tocar lá", diz Lehart. "Mas não sei se é exatamente uma coisa de São Paulo. Carioca já nasce sambista, mas dos 80 para cá a maioria dos nomes que fornecem composições ao samba é daqui. A própria Leci Brandão fala que a carreira dela mudou muito quando veio para cá."

Pagode?
Ponto em que Lehart e Boca são discordantes é o do rótulo "pagode". "Essa linha dolente, do samba mela-cueca, não é a minha. Não gosto do nome "pagodeiro", é uma forma de denegrir a imagem do samba. Eu sou sambista. O samba está meio em baixa porque falta humildade a muitos dessa molecada", desfecha Boca.
Lehart relativiza: "Na geração dele não havia esse nome, era partideiro ou versador. Sei que pagode hoje parece sinônimo de "artista de vida fácil" [ri", mas procuro não renegar meu passado de pagodeiro. Não tenho vergonha de ser chamado de pagodeiro, foi como consegui tudo que tenho".
"Mas o Art Popular sabia se diferenciar, suas letras eram diferentes de tudo", amacia Boca.
"No som também foi assim, "Agamamou" foi um formato que criamos. Mas tudo se generalizou, todo mundo ficou no mesmo partido. Faltou criatividade, coragem de fazer algo novo. Hoje existe essa "whitney-houstonização" das cantoras'", critica Lehart.
"Hoje muita gente nem sabe que saí do Art Popular, parece que estou começando de novo, que ninguém me conhece. Se eu tivesse saído do Art há quatro anos, quando o pagode estava no auge, minha história seria diferente."
Falando em criatividade, o "desinglês" inventado por Boca Nervosa é assim justificado: "É a "embromation". Eu queria ser americano. Como diz Ed Motta, se eu fosse americano não seria assim". Ai, se a nata nacionalista do samba o ouve falando isso...



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