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MARCELO COELHO
Anacronismos e atualidades simultâneos
Coisa mais antiquada, um
jornal de 1948. Estava-se
ainda no governo Dutra -período em que, como se sabe, não
acontecia quase nada. As fotos
parece que já nasciam esmaecidas. Algumas personalidades de
destaque surgem como se convocadas numa sessão espírita. As
manchetes, os títulos, o estilo dos
textos, tudo se torna turvo, quase
irreconhecível. Sem contar a confusão gráfica dos artigos que se
interrompem numa página e continuam numa coluna perdida três
páginas depois, ou duas páginas
antes, conforme os improvisos da
diagramação.
Essa estranheza é também, claro, de conteúdo. Veja-se o esquisito comentário que acompanha
uma foto do presidente Dutra em
Salvador.
"O presidente não tem preconceito? O Exmo. Snr. Presidente
Dutra, por ocasião de sua recente
viagem à terra do Senhor do Bonfim, deixou-se fotografar todo
sorridente de braço dado às retintas e simpáticas baianas que vemos no clichê. Isso prova que S.
Excia. não alimenta qualquer
preconceito de cor."
O texto continua, num estilo
mais combativo, defendendo a
adoção de medidas contra a discriminação racial no Brasil. Mas
dizendo isso eu já vou estragando
a surpresa que tinha preparado. É
que o jornal se chamava "Quilombo", propondo-se a enfocar
"vida, problemas e aspirações do
negro".
Foi publicado de dezembro de
1948 a julho de 1950, inicialmente
com periodicidade mensal. Dirigido por Abdias do Nascimento,
teve colaboradores como Murilo
Mendes, Rachel de Queiroz e Gilberto Freyre. Seu número 5, de janeiro de 1950, apresenta a tradução de um importante artigo de
Jean-Paul Sartre, "Orfeu Negro",
sobre a poesia africana e o tema
da negritude.
A editora 34 lançou agora em livro o fac-símile de todos os números de "Quilombo", com uma introdução do pesquisador Antonio
Sérgio Alfredo Guimarães e uma
apresentação escrita pelo próprio
Abdias do Nascimento, 89, com a
colaboração de Elisa Larkin do
Nascimento.
Tenho com frequência a impressão de que, no Brasil, as coisas mudam rapidamente e, ao
mesmo tempo, não se alteram no
essencial. A leitura de "Quilombo" produz esse efeito simultâneo
de anacronismo e atualidade.
O jornal enuncia, nos dois primeiros tópicos de seu programa, o
propósito de "colaborar na formação da consciência de que não
existem raças superiores nem servidão natural, conforme nos ensina a teologia, a filosofia e a ciência" e "esclarecer ao negro que a
escravidão significa um fenômeno histórico completamente superado, não devendo, por isso, constituir motivo para ódios ou ressentimentos e nem para inibições
motivadas pela cor da epiderme
que lhe recorda sempre o passado
ignominioso".
Em 1950, não havia sido ainda
promulgada a Lei Afonso Arinos;
o jornal relata, numa seção ironicamente denominada "Pelourinho", casos de instituições de caridade, de creches e orfanatos, por
exemplo, que não admitiam o ingresso de crianças "de cor".
"Quilombo" também acompanha o lento processo de aceitação
do candomblé como culto religioso. Publica uma carta do ex-chefe
de polícia de Belém do Pará "sobre o importante assunto". A autoridade afirma: "Nas estatísticas
do departamento de segurança
não figuram os "terreiros" como
focos de desordens ou como contrários aos bons costumes".
Campanhas desse tipo, contudo, tinham de ser realizadas com
muita diplomacia e habilidade.
Um editorial de "O Globo", que
"Quilombo" reproduz, denuncia
as iniciativas de criar no país "um
problema que nunca existiu". E
continua: "Desde os tempos mais
remotos de nossa formação, pretos e brancos se tratam cordialmente (...). No entanto, de uns
tempos para cá, vêm-se constituindo correntes preocupadas em
dar aos negros uma situação à
parte. Teatro negro, jornal dos
negros, clubes dos negros..., mas
isso é imitação pura e simples".
Imitação dos americanos, bem
entendido. "Quilombo" corria,
assim, o risco de ser chamado de
"racista ao inverso", de propugnar uma espécie de racismo negro. Evitando ao máximo o tom
beligerante, o jornal enfatizava
muito a idéia de que havia no
Brasil uma "democracia racial".
O lema, tão utilizado por Gilberto
Freyre, hoje nos soa abertamente
mentiroso. Como observa Antonio Sérgio Guimarães na introdução do livro, o termo assumia em
"Quilombo" uma outra conotação. Era apresentado como uma
palavra de ordem, um ideal a ser
posto em prática, mais do que como descrição de um estado de coisas supostamente existente.
Uma luta enorme não só contra
o preconceito racial mas também
em favor da simples visibilidade,
da simples afirmação da consciência negra, estava começando.
Em alguns aspectos, essa luta foi
vitoriosa. É, sem dúvida, um bom
sinal o fato de que tantas notícias,
argumentos e temas enfocados
naquele jornal pareçam hoje ultrapassados.
O país tornou-se bem mais "politicamente correto". Ao mesmo
tempo, nada parece ter mudado
de fato. Sempre que vejo Colin Powell na televisão, representando o
tão detestado governo Bush, me
surpreendo com a cara de brasileiro que ele tem. Mas, se fosse
brasileiro, seu destino seria provavelmente outro.
Simetricamente, li que uma cidadã, feliz ao encontrar-se pessoalmente com Lula e pedir-lhe
um autógrafo, declarou-se espantada: não imaginava que ele fosse
tão "coradinho" (isto é, rosado).
Como veio "de baixo", tinha de
ser mais escuro... Foi, sem dúvida,
o que ela pensou. Mas não são
coisas que se digam.
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