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São Paulo, quarta-feira, 04 de junho de 2003

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MARCELO COELHO

Anacronismos e atualidades simultâneos

Coisa mais antiquada, um jornal de 1948. Estava-se ainda no governo Dutra -período em que, como se sabe, não acontecia quase nada. As fotos parece que já nasciam esmaecidas. Algumas personalidades de destaque surgem como se convocadas numa sessão espírita. As manchetes, os títulos, o estilo dos textos, tudo se torna turvo, quase irreconhecível. Sem contar a confusão gráfica dos artigos que se interrompem numa página e continuam numa coluna perdida três páginas depois, ou duas páginas antes, conforme os improvisos da diagramação.
Essa estranheza é também, claro, de conteúdo. Veja-se o esquisito comentário que acompanha uma foto do presidente Dutra em Salvador.
"O presidente não tem preconceito? O Exmo. Snr. Presidente Dutra, por ocasião de sua recente viagem à terra do Senhor do Bonfim, deixou-se fotografar todo sorridente de braço dado às retintas e simpáticas baianas que vemos no clichê. Isso prova que S. Excia. não alimenta qualquer preconceito de cor."
O texto continua, num estilo mais combativo, defendendo a adoção de medidas contra a discriminação racial no Brasil. Mas dizendo isso eu já vou estragando a surpresa que tinha preparado. É que o jornal se chamava "Quilombo", propondo-se a enfocar "vida, problemas e aspirações do negro".
Foi publicado de dezembro de 1948 a julho de 1950, inicialmente com periodicidade mensal. Dirigido por Abdias do Nascimento, teve colaboradores como Murilo Mendes, Rachel de Queiroz e Gilberto Freyre. Seu número 5, de janeiro de 1950, apresenta a tradução de um importante artigo de Jean-Paul Sartre, "Orfeu Negro", sobre a poesia africana e o tema da negritude.
A editora 34 lançou agora em livro o fac-símile de todos os números de "Quilombo", com uma introdução do pesquisador Antonio Sérgio Alfredo Guimarães e uma apresentação escrita pelo próprio Abdias do Nascimento, 89, com a colaboração de Elisa Larkin do Nascimento.
Tenho com frequência a impressão de que, no Brasil, as coisas mudam rapidamente e, ao mesmo tempo, não se alteram no essencial. A leitura de "Quilombo" produz esse efeito simultâneo de anacronismo e atualidade.
O jornal enuncia, nos dois primeiros tópicos de seu programa, o propósito de "colaborar na formação da consciência de que não existem raças superiores nem servidão natural, conforme nos ensina a teologia, a filosofia e a ciência" e "esclarecer ao negro que a escravidão significa um fenômeno histórico completamente superado, não devendo, por isso, constituir motivo para ódios ou ressentimentos e nem para inibições motivadas pela cor da epiderme que lhe recorda sempre o passado ignominioso".
Em 1950, não havia sido ainda promulgada a Lei Afonso Arinos; o jornal relata, numa seção ironicamente denominada "Pelourinho", casos de instituições de caridade, de creches e orfanatos, por exemplo, que não admitiam o ingresso de crianças "de cor".
"Quilombo" também acompanha o lento processo de aceitação do candomblé como culto religioso. Publica uma carta do ex-chefe de polícia de Belém do Pará "sobre o importante assunto". A autoridade afirma: "Nas estatísticas do departamento de segurança não figuram os "terreiros" como focos de desordens ou como contrários aos bons costumes".
Campanhas desse tipo, contudo, tinham de ser realizadas com muita diplomacia e habilidade. Um editorial de "O Globo", que "Quilombo" reproduz, denuncia as iniciativas de criar no país "um problema que nunca existiu". E continua: "Desde os tempos mais remotos de nossa formação, pretos e brancos se tratam cordialmente (...). No entanto, de uns tempos para cá, vêm-se constituindo correntes preocupadas em dar aos negros uma situação à parte. Teatro negro, jornal dos negros, clubes dos negros..., mas isso é imitação pura e simples".
Imitação dos americanos, bem entendido. "Quilombo" corria, assim, o risco de ser chamado de "racista ao inverso", de propugnar uma espécie de racismo negro. Evitando ao máximo o tom beligerante, o jornal enfatizava muito a idéia de que havia no Brasil uma "democracia racial". O lema, tão utilizado por Gilberto Freyre, hoje nos soa abertamente mentiroso. Como observa Antonio Sérgio Guimarães na introdução do livro, o termo assumia em "Quilombo" uma outra conotação. Era apresentado como uma palavra de ordem, um ideal a ser posto em prática, mais do que como descrição de um estado de coisas supostamente existente.
Uma luta enorme não só contra o preconceito racial mas também em favor da simples visibilidade, da simples afirmação da consciência negra, estava começando. Em alguns aspectos, essa luta foi vitoriosa. É, sem dúvida, um bom sinal o fato de que tantas notícias, argumentos e temas enfocados naquele jornal pareçam hoje ultrapassados.
O país tornou-se bem mais "politicamente correto". Ao mesmo tempo, nada parece ter mudado de fato. Sempre que vejo Colin Powell na televisão, representando o tão detestado governo Bush, me surpreendo com a cara de brasileiro que ele tem. Mas, se fosse brasileiro, seu destino seria provavelmente outro.
Simetricamente, li que uma cidadã, feliz ao encontrar-se pessoalmente com Lula e pedir-lhe um autógrafo, declarou-se espantada: não imaginava que ele fosse tão "coradinho" (isto é, rosado). Como veio "de baixo", tinha de ser mais escuro... Foi, sem dúvida, o que ela pensou. Mas não são coisas que se digam.


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