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FERNANDO GABEIRA
De volta ao apartamento de Roberto Jefferson
Quando Lula e Roberto Jefferson jantaram juntos, escrevi um relato descrevendo o que
via nas fotos. Falei de quase tudo
o que as fotos mostravam, a arara
de cabeça baixa, as bolsas das
mulheres deixadas no sofá.
Lembro-me de que Lula parecia
não estar totalmente ali. Havia
alguma coisa em sua pose, uma
certa recusa, uma dúvida na expressão corporal. Os fatos posteriores arrastaram as hesitações e
ele se mostrou solidário com Jefferson quando aconteceu o escândalo.
Se fosse escolher um bom cenário para contar em teatro a história desse sobressalto brasileiro,
apontaria o apartamento de Jefferson. Ali houve o encontro em
que Lula já flutuava na sua ambigüidade. De um lado, o corpo arredio; de outro, aquela frase: "Assino um cheque em branco e o entrego nas mãos de Jefferson".
Isso é muito comum no Lula.
Em todos nós, para dizer a verdade. Quando algo hesita no fundo,
compensamos com uma frase categórica, algo que esmague verbalmente a dúvida e nos permita
a ilusão de liquidar o dilema.
O sentido do jantar era mostrar
o quanto Lula confiava em Jefferson, como estavam próximos. Ali,
no mesmo lugar, o apartamento
de Jefferson, aconteceria o desfecho poucas semanas depois. Dois
ministros imploravam, segundo
as versões não desmentidas, a Jefferson que não envolvesse o governo nos inúmeros depoimentos
que teria pela frente.
Nesse ponto, a falha do autor.
Descrevi o jantar inicial, mencionei a arara, as bolsas, a hesitação
corporal de Lula, as aulas de canto de Jefferson, sua interpretação
de "Eu Sei que Vou te Amar". Foi
como se o jantar se fizesse por si
próprio e voasse para a mesa, como um pássaro do cerrado. Esqueci-me da empregada da casa
de Roberto Jefferson.
No segundo ato, ela tem um papel decisivo. Abriu a porta para os
dois ministros, que haviam tentado visitar Jefferson duas vezes em
vão. Por que abriu se o patrão
queria se isolar? Os historiadores
do futuro vão desvendar esse detalhe ou, talvez, deixar que mergulhe no limbo como tantos outros.
Aqui em Brasília, todos se apresentam na portaria. Há duas vozes que ouvimos com freqüência:
a dos vendedores de água mineral
e de gás. Pode ser que ela tenha se
enganado com isso. Talvez, ao
ouvir a campainha, tenha usado
o olho mágico, que, na verdade,
aumenta o ângulo de visão,
transformando levemente o rosto.
Com uma visão limitada das faces, pode ter pensado que um ministro fosse o vendedor de gás, e o
outro, mais encorpado, de óculos
e com o rosto redondo, fosse o próprio dono do caminhão. Só viriam juntos se houvesse alguma
conta atrasada, algo que comprometesse sua administração doméstica. Deve ter aberto a porta
simplesmente para que tudo ficasse esclarecido.
As pessoas pensam assim, mas
nem sempre os governos o fazem.
É, entretanto, incorreto concluir
que os governos são menos inteligentes do que pessoas isoladas. O
diabo com eles é que costumam se
meter em situações tão estreitas,
no sentido de perderem a margem de manobra, que são condenados a cometer um erro atrás do
outro.
Essa idéia não é minha. A primeira vez que tive contato com
ela foi nos livros de Isaac Deutcher sobre Trótski. Ele falava das
situações históricas nas quais a
margem de manobra se estreitava e os dirigentes de um governo,
ou mesmo de uma classe social,
mergulhavam numa inevitável
seqüência de erros.
Lula talvez não imaginasse as
conseqüências do jantar. Jefferson
cantava um amor por toda a vida. "Em cada ausência tua, eu
vou chorar,/ mas cada volta tua
há de apagar / a dor que a tua ausência me causou". A lua de Brasília e talvez um conhaque os fizessem sentimentais.
Hoje vivemos um clima do tipo
"Eu Sei o que Vocês Fizeram no
Verão Passado". De um lado,
acusações; de outro, tentativas de
desfazer as pegadas, dissolver pistas. Para ser franco, entramos
num túnel de onde sairemos vivos, mas alguns com cicatrizes em
suas biografias.
A esperança dos que hoje se
comportam como tropa de choque, que se recusam, ao contrário
da empregada de Jefferson, a
abrir a porta, é a de que o problema seja limitado aos políticos
que, entregues a si próprios, sempre encontram os caminhos da
conciliação.
Eles acham também que a popularidade do Lula é inesgotável
e que, bem trabalhada pelos marqueteiros, pode suplantar todos
esses problemas, do Waldomiro
ao Jefferson, passando pela incompetência específica em governar.
Essa certeza de que tudo se vence com dinheiro, essa confiança
cega em neutralizar a televisão,
ampliar a clientela social e simplesmente ignorar os milhares de
consciências que assistem a tudo,
é um dado novo. Os amigos não
estão perdidos; simplesmente passaram a acreditar que o bandido
vence no final.
Enfrentamos cadeia, tortura e
exílio e, de certa forma, sobrevivemos moralmente inteiros. A experiência do poder quebrou mais
nossa vontade do que todos os
paus-de-arara; os holofotes e o
cordão de puxa-sacos nos confundiram mais do que choques elétricos. Amigos que enfrentaram horas de tortura para salvar os outros hoje se dedicam a produzir
notinhas, uns contra os outros.
Tudo o que é sólido se desmancha no ar. Há dissoluções mais
bonitas, passagens mais perfumadas. Esse episódio, mascarado de
ascensão de um trabalhador ao
governo, é uma crueldade histórica. Levarei muitos anos para justificar a mim mesmo como foi
possível acreditar nisso, já no fim
do século 20, quando experiência
e prática nos incitavam a duvidar. Ignorantes da tragédia histórica, fomos condenados à farsa.
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